As telas desaparecidas ou a história de uma amizade

Esta é uma aventura com quatro décadas, que começa na pacatez de Lagos em 1972 e acaba numa exposição em Tavira. Pelo meio, uma revolução, pinturas misteriosamente desaparecidas, encontros, desencontros e uma ligação muito especial entre dois artistas portugueses e um americano.

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Vincent Baldassano em Junho em Tavira FOTO: Miguel Proença

O telefone de David Evans tocou. Do outro lado, a voz de Judite da Cruz, antiga proprietária da galeria onde David tinha trabalhado antes do 25 de Abril: “Lembras-te daquele pintor americano que ia fazer uma exposição?”. David sentiu-se a viajar no tempo, 40 anos para trás. Sim, lembrava-se do americano, claro. Chamava-se Vincent Baldassano.

Ao fazer arrumações no atelier do marido, Nuno Siqueira, já falecido, Judite encontrara, por acaso, um rolo com telas, que caíra para trás de uma estante e lá ficara esquecido. Junto ao rolo estava também um envelope com pinturas de Baldassano. David ficou estupefacto com o que ela lhe contou e pôs-se imediatamente à procura do contacto do americano.

Pouco tempo depois, do outro lado do Atlântico, Vincent Baldassano recebe a notícia: as suas telas, que ele imaginava perdidas há mais de 40 anos, tinham sido encontradas. E, de repente, também ele entra num túnel do tempo e do espaço que o despeja em Lagos, Algarve, no ano de 1972.

“Lagos era uma vila de pescadores, lembro-me de os ver na praia, a arranjar as redes”, recorda, numa conversa telefónica com o Ípsilon, a partir de Tavira, onde chegou em Junho passado para preparar a exposição que inaugurou a 2 de Julho na Casa das Artes.  

Em 72 – e depois de um incêndio que lhe destruiu todo o trabalho que tinha no atelier em Buffalo – foi viajar pela Europa num ano sabático. “Estava na Suécia, onde fazia frio, e vi numa agência de viagens um poster de Portugal, com sol, um moinho e praias com areia e rochas”. Sem hesitar, meteu-se no carro e seguiu para Sul.

Chegado a Lagos, com a sua companheira de viagem, alugou um pequeno apartamento. “Éramos os únicos americanos”, conta. “Fomos para a praia e era inacreditável, não se via ninguém excepto duas ou três pessoas que assavam sardinhas e que nos chamaram para comer.” Vincent ainda hesitou. Seria legal? Percebeu que não havia problema quando uns polícias que iam a passar também se juntaram ao grupo para comer as sardinhas. O homem que os tinha convidado era uma figura alta, com caracóis compridos e correntes de ouro ao pescoço, que se apresentou como Tarzan – era Carlos Tarzana, “uma espécie de presidente da Câmara não oficial”.

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Vincent Baldassano em Lagos em 1972

Dias depois, Tarzan bateu à porta da casa de Vincent – onde este pintava usando a estrutura de madeira da cama como cavalete – e disse-lhe que ele tinha que conhecer dois artistas locais. Vincent confessa que imaginou que seriam dois pintores de paisagens com barquinhos. Não estava à espera de conhecer aqueles que se tornariam os seus maiores amigos em Portugal: Joaquim Bravo e Álvaro Lapa.

David Evans ajuda a contar a história. “Vincent ficou muito espantado porque Lapa e Bravo sempre foram artistas que eram, ao mesmo tempo, pensadores e que estavam muito bem informados. Vivia-se muito naquela época de livros de arte, de conversas entre as pessoas. Houve um entendimento entre eles, uma intensidade de troca de experiências que permitiu que comunicassem perfeitamente.”

Lapa, que era professor de inglês, dominava perfeitamente a língua. Quanto a Lapa, o que Vincent se lembra era que ele tinha “um celeiro abandonado, que partilhava com um burro ou uma cabra, numa colina com vista para o oceano”. Era aí que pintava e escrevia poesia. Quanto à comunicação, “Lapa falava uma espécie de inglês metafísico”, recorda num texto que escreveu sobre esse tempo. “Lembro-me de perguntar ao Bravo se o Lapa falava português como falava inglês. Bravo sorriu e disse ‘claro’”.

Mas isso não impedia os três amigos de passarem longas horas a ver e a discutir o trabalho uns dos outros, em profundas conversas filosóficas. “Encontrávamo-nos todos os dias, eles vinham ao meu estúdio, eramos capazes de passar 20 ou 30 minutos a olhar para um quadro, e de alguma forma comunicávamos, numa espécie de terceira língua”.

E aconteceu a revolução

Vincent viveu um ano em Lagos. “Foi muito intenso, de uma maneira boa”. Fez algumas viagens com os seus novos amigos portugueses e numa delas foi até Lisboa, onde Bravo o apresentou a David Evans, então director da Galeria Judite DaCruz. Surgiu a ideia de fazer uma exposição com os trabalhos de Vincent, mas David só tinha disponibilidade no calendário da galeria no ano seguinte. Nenhum problema. O americano deixou quatro telas e vários desenhos e ficou combinado que regressaria um ano depois.

Mas o ano seguinte foi 1974.

Em Nova Iorque, Vincent ouviu alguma coisa sobre uma revolução em Portugal. “Lembro-me de ver uma fotografia no The New York Times com soldados e pessoas a distribuir cravos”. O problema é que todas as tentativas de contacto com a galeria se revelavam inúteis. O tempo passou e Vincent não conseguia falar com ninguém. “Parti do princípio que tinha perdido o meu trabalho.”

Mais tarde, em 1990, reencontrou-se com Bravo na feira de arte Arco, em Madrid. “Lapa não podia ir mas o filho dele, Hugo, estava lá.” Vincent conheceu outros artistas portugueses, entre os quais Xana, e acabou por viajar até Évora com Bravo. Foi aí, passeando pelas ruas, que tiveram uma das conversas mais intensas que se lembra de alguma vez ter tido.

Joaquim Bravo já estava doente – acabaria por morrer nesse mesmo ano – mas esse facto passou apenas ao de leve na conversa entre os dois. Viajaram depois até Lagos, Bravo contou que ia reformar-se e viver numa casa ao lado da qual havia um terreno disponível e perguntou a Vincent se não quereria comprá-lo.

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Álvaro Lapa (em primeiro plano) com Joaquim Bravo e o filho, em 1973 em Lagos

O norte-americano entusiasmou-se com a proposta, mas a vez seguinte em que recebeu notícias de Portugal foi para descobrir algo que o deixou em choque: “Bravo tinha morrido. E, de repente, foi como se todo o ar tivesse saído de dentro de mim”. Um dos resultados desse choque foi o quadro “Walk with Bravo” que Vincent fez nesse ano, dedicado ao amigo. O outro resultado foi ter perdido a vontade de ter uma casa em Lagos.

Mas a sua história com Portugal estava longe de ter acabado. No ano passado chega o email de David contando-lhe que as telas misteriosamente desaparecidas em 74 tinham sido encontradas e que ia devolvê-las. “Era como se tudo tivesse acontecido ontem. Olha, by the way: encontrámos as telas”, ri Vincent.

David não conseguia, no entanto, conformar-se com a ideia de que as coisas ficariam por aqui. “Aquilo estava-me atravessado e perguntei-lhe: não gostavas de fazer uma exposição cá?”, conta. “O que era giro era fazeres no Algarve e com quadros do Lapa [que morreu em 2006] e do Bravo da mesma época.”

Vincent gostou da ideia e David encontrou o sítio ideal, a Casa das Artes, em Tavira, um espaço de José Delgado Martins, que aderiu também entusiasticamente ao projecto. Até porque, explica, este lhe permite contar uma história mais ampla sobre a passagem de muitos artistas pelo Algarve na segunda metade do século XX, entre os quais António Palolo, João Cutileiro, Pedro Cabrita Reis, Xana. “Lagos e Tavira, ‘gémeas’ do Sul, com sal e sol, atraentes pelo seu passado, gentes amáveis e histórico património foram acolhendo, a barlavento e sotavento, sucessivas gerações de artistas”, escreve Delgado Martins no catálogo da exposição que ocupa – até 5 de Agosto – a Casa das Artes. A 28 de Julho, às 22h, haverá um debate sobre este tema, reunindo artistas e agentes culturais (Dália Paulo, Ilídio Salteiro, Cutileiro, Manuel Baptista, Nuno Faria e Cabrita Reis).

Baptizada como Reencontro, a exposição, com curadoria de David Evans, reúne os “quadros desaparecidos” de Vincent Baldassano, as obras que o pintor norte-americano fez nas últimas semanas, instalado em Tavira, outras que fazem a transição entre esses trabalhos dos anos 70 e os de hoje – e ainda, claro, várias obras de Bravo e Lapa.

Eram artistas muito diferentes, explica David. “Lapa e Bravo tinham um trabalho muito intenso, sóbrio, austero, muito mais introvertido, enquanto Baldassano chega de Nova Iorque em pleno período da pintura pop” e pinta telas coloridas e exuberantes. Mas entre os três havia uma ligação profunda – tinham encontrado a tal “terceira língua” de que fala Vincent e que, apesar de todos os desencontros, os junta agora de novo, 40 anos depois, debaixo do mesmo sol algarvio.

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