Inspecção detecta insuficiências na única unidade pública de mudança de sexo

Auditoria da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde diz que é "insuficiente o tempo afecto à equipa multidisciplinar de cirurgia" e recomenda a criação de uma consulta e de uma lista de espera específicas.

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Diagnóstico de disforia de género (transexualidade) é a primeira etapa de um complexo processo CLAUDIA DAUT/REUTERS

A Unidade Reconstrutiva Génito-Urinária e Sexual (URGUS) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) “não existe”, diz o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva. Prova disso, considera, é a lista de insuficiências encontrada pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).

A auditoria foi desencadeada na sequência de queixas apresentadas à Ordem dos Médicos (OM) por pessoas com disforia de género. O bastonário, José Manuel Silva, decidiu encaminhá-las para a IGAS. Vários activistas LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero) já faziam eco do descontentamento: havia quem estivesse a recorrer a serviços privados por não conseguir inscrição no serviço público ou por não querer lá fazer as cirurgias de reatribuição sexual. Faltava-lhes confiança.

O serviço envolve psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas, urologistas, ginecologistas, cirurgiões plásticos. O processo pode implicar intervenção genital (vaginoplastia ou faloplastia), mamoplastia (de aumento de mamas) ou mastectomia (retirada de mamas) e procedimentos complementares, como cirurgias de contorno corporal (lipoaspiração dos flancos e coxas, por exemplo).

O relatório da IGAS sobre aquela unidade, e ao qual o PÚBLICO teve parcialmente acesso, indica “inexistência de consulta específica no âmbito de cada especialidade para utentes com disforia de género”, o que que faz com que estejam “dispersos nos ficheiros da consulta externa de cada especialidade misturados com os outros doentes”. E recomenda que tal se crie para melhor sinalizar os casos e facilitar a comunicação entre médicos.

Unidade sem lista de espera organizada

A IGAS também aponta “inexistência de lista de espera específica” e aconselha a tê-la na unidade e na cirurgia. Isto para simplificar a "referenciação entre as várias especialidades e a consulta recíproca de dados clínicos de cada uma delas". E para evitar que as pessoas estejam em listas de espera nas diferentes especialidades cirúrgicas – ginecologia, urologia e cirurgia plástica. Isso ajudaria a controlar a situação e a “obter dados estatísticos de forma imediata”.

O relatório indica ainda “insuficiência de tempo afecto à equipa multidisciplinar”; “dificuldades de coordenação”, já que “os profissionais têm muitas outras responsabilidades e tarefas nos serviços a que pertencem”; “dificuldades de reunir todos os elementos com vista à discussão, avaliação e decisão de casos clínicos, o que só tem sido possível depois do horário normal de trabalho”.

A IGAS refere, por fim, que não existem constrangimentos de bloco operatório nem dificuldade na compra e fornecimento de material clínico. Entende, porém, ser “insuficiente o tempo afecto à equipa multidisciplinar de cirurgia, tendo em conta que os cirurgiões de ginecologia, urologia e cirurgia plástica desempenham as suas funções normais nos respectivos serviços a que pertencem”.

“O relatório, no aspecto da aplicação clínica, não faz nenhuma recomendação, o que nos dá alguma satisfação”, reage José Martins Nunes, presidente do conselho de administração do CHUC, em declarações ao PÚBLICO. O que está em causa, observou, "não é prática médica, não são processos terapêuticos, são alguns aspectos administrativos, organizacionais e informáticos".

Admitindo que “há aspectos que devem ser mais bem trabalhados”, Martins Nunes afirma que já foi criada uma consulta específica no âmbito de cada especialidade. E estão a fazer-se listas de espera específicas. Só não concorda “com a necessidade de instalação de um sistema informático específico para esta unidade, já que esse deverá estar englobado no sistema dos hospitais de Coimbra”.

Ordem aponta falhas à auditoria

“Esta auditoria não é séria”, entende o bastonário. “Por que é que os doentes não foram ouvidos? Por que é que a Ordem dos Médicos não foi ouvida? Por que é que o doutor Décio Ferreira, que acaba de receber uma medalha de ouro na Alemanha pelas suas técnicas inovadoras, não foi ouvido? A IGAS não tem competência para fazer a avaliação clínica e não quis ouvir quem tem essa competência.”

“Ao fim e ao cabo, a unidade não existe”, avalia o bastonário. “Não há consulta específica. É preciso criar consulta específica. Não há lista de espera. É preciso criar lista de espera”, prossegue. “Quantos doentes foram operados na Unidade Reconstrutiva Génito-Urinária e Sexual? Quantas cirurgias genitais fizeram? Eu assino cerca de 40 autorizações por ano.”

O processo é longo e complexo. Primeiro, é preciso passar por uma avaliação médica. Depois, é preciso repetir tudo, num local distinto, para reconfirmar o diagnóstico de “Perturbação de Identidade de Género” ou “Disforia de Género”. Só então a pessoa pode avançar para terapêutica hormonal, prescrita por um endocrinologista. Para alterar o nome e o género no registo civil e fazer cirurgia de mudança de sexo, tem de obter um parecer favorável da Ordem dos Médicos.

Este tipo de tratamento está previsto na legislação portuguesa desde 1995. No Serviço Nacional de Saúde, começou por ser ministrado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Godinho de Matos garantiu-o nos primeiros anos. Manteve-se até o médico então responsável, João Décio Ferreira, atingir o limite de idade e se aposentar, em 2011. Foi então que nasceu a URGUS.

Em Fevereiro último, a directora daquele serviço, Lígia Margarida Fonseca, disse ao PÚBLICO que, desde de que o serviço foi constituido, em Novembro de 2011, tinham sido feitas 65 cirurgias a 27 pessoas transgénero. Em 52% dos casos,  “intervenções do sexo masculino para feminino”.

Neste momento, garante Martins Nunes, a equipa de cirurgia já foi reforçada através do aumento do tempo afecto à unidade. O serviço está a reorganizar-se para haver mais tempo para a equipa discutir e avaliar os casos clínicos. Vão agora propor uma candidatura para transformar a unidade num centro de referenciação nacional. Até porque a IGAS indica que se deve clarificar se unidade “recebe utentes referenciados por serviços e entidades de todo o país (e não exclusivamente de origem interna, como está plasmado)”. 

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