Para investigar terrorismo ou tráfico de seres humanos há que investigar os crimes que os suportam

António Cluny, o procurador português na Eurojust, diz que o Reino Unido é um parceiro-chave na União Europeia e que a sua saída pode afectar a cooperação judiciária, se houver quebra de acordos.

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António Cluny, o procurador português na Eurojust Nuno Ferreira Santos

“A Europa não é habitada só por democratas”, diz o procurador António Cluny, membro português da Eurojust, o órgão da União Europeia com sede na Haia (Holanda) que combate todas as formas graves de criminalidade organizada. O representante português explica que, na luta antiterrorista, a desradicalização ganha adeptos, mas é preciso definir com rigor esta política e os seus alvos.

A saída do Reino Unido terá consequências profundas na União Europeia (UE). Em que medida vai afectar a cooperação judiciária internacional e a luta contra o crime organizado? Não esqueçamos que este era o país da UE que mais informação criminal recolhe e distribui.
O Reino Unido é, de facto, um dos países que mais tem contribuído para o trabalho da Eurojust e que mais dele tem beneficiado. E é um parceiro indispensável na Europa, quer pela sua relevância geoestratégica, quer pela diversidade das comunidades imigrantes que acolhe. Por isso é necessário encontrar, para bem de todos, as melhores formas de continuar a cooperar — e estou convencido de que a Eurojust e o Reino Unido têm instrumentos para o fazer. O Reino Unido ratificou as principais convenções do Conselho da Europa e da União Europeia, razão pela qual as partes terão de reflectir sobre o seu grau de permanência nas mesmas, e não permitir que esta saída afecte a cooperação desenvolvida ao longo de anos.

Não antevê rupturas?
É evidente que a presença dos colegas ingleses, com um gabinete nacional na Eurojust, facilita muito a cooperação, mas neste momento trabalham connosco magistrados de ligação da Suíça e da Noruega que desempenham as mesmas funções dos membros nacionais (não direi a 100% porque não podem votar), com resultados significativos. Mediante a celebração de um memorando de entendimento, a Eurojust pode ainda oferecer soluções que permitam minorar os efeitos desta saída. Nos últimos anos, foi possível elevar a confiança mútua a um patamar tal que parece difícil uma regressão radical. Contudo, só um processo de separação sereno e adequado poderá mitigar os riscos inerentes.

Há 30 sistemas jurídicos diferentes na UE e ainda existem muitos problemas de cooperação. Acredita que a nova directiva (European Investigative Order) — que prevê a execução imediata de escutas, interrogatórios e outras medidas de investigação entre os Estados membros — vai ajudar a resolver este problema?
Não considero que a existência de 30 sistemas jurídicos seja necessariamente um problema. No trabalho diário, temos aprendido as características e aspectos positivos de cada modelo, e muitas vezes incorporamo-los nos nossos próprios sistemas nacionais. E é através dessa compreensão que se reforça a confiança mútua necessária ao reconhecimento recíproco de decisões judiciais.

Mas os problemas de cooperação persistem…
Sim, mas até existem dentro de cada país. É por isso que existe a Eurojust. Mas estou convencido de que esta directiva vai reforçar essa confiança. De qualquer forma, uma boa transposição implica encontrar soluções que se adequem ao sistema judiciário de cada país, de modo que a directiva seja um instrumento eficiente e não algo que cause perturbação. A prática ensina que uma boa transposição não se basta com uma razoável tradução. No caso português, importa apelar a que seja transposta até 22 de Maio do próximo ano e que nela se salvaguarde a coerência do sistema nacional. Estou certo, porém, de que o Ministério da Justiça está atento a esta questão. Estamos, aliás, a preparar um seminário sobre o tema para o próximo ano, que será aberto a toda a comunidade judiciária: advogados, procuradores, juízes e académicos.

Outra novidade prestes a ser implementada é a figura do Procurador Europeu. Em que casos poderá intervir e que vantagens terá?
O Procurador Europeu é a primeira tentativa de criação de um instrumento judiciário a nível europeu, que deverá lidar com crimes de natureza financeira cometidos contra os interesses da UE, e também já se falou na possibilidade de incluir crimes ambientais e até alguns de terrorismo. Mas é um processo complexo e não se sabe ainda qual será o desenho final nem que problemas trará quanto à compatibilização do Estatuto dos seus membros com o dos membros das magistraturas nacionais. Pode haver, de facto, problemas de constitucionalidade que importa antecipar e daí que tanto a anterior como a actual ministra da Justiça tenham acompanhado este projecto com todo o cuidado. Veremos… Sabe-se que há países que já se demarcaram (Reino Unido, Irlanda e Dinamarca) e outros colocam sérias reservas.

Quais são actualmente os crimes de combate prioritário para a Eurojust?
As prioridades centram-se, neste momento, nos crimes de terrorismo, tráfico de seres humanos ligado a imigração ilegal e cibercriminalidade. É claro que temos consciência de que não é possível investigar terrorismo ou tráfico de seres humanos sem investigar muitas vezes outros crimes que lhes servem de suporte. Adaptando a esta questão um pensamento já antigo: quem só sabe de uma coisa quase nem disso chega a saber. O terrorismo socorre-se muitas vezes de redes de tráfico de armas ou de droga, e de branqueamento de capitais – para se armar e autofinanciar –, e por isso é importante dedicar toda a atenção a estes crimes, porque são eles que muitas vezes ajudam a desmantelar as redes de terrorismo. A criminalidade não é estanque e há que ter muito cuidado quando se fala em prioridades: se canalizarmos todos os meios para uma área porque podemos, sem querer, tornar a investigação menos operacional.

Continuamos a assistir a uma vaga sem precedentes de refugiados, muitos deles vítimas de redes de auxílio à imigração ilegal. Estaremos a investigar devidamente este fenómeno e que papel tem a Eurojust nesta área?
A Eurojust esteve presente nos momentos críticos e mantém pontos de contacto nos chamados hotspots em Catânia e Lesbos. Mas é difícil dizer se estamos a investigar bem um fenómeno que não pode ser visto apenas numa perspectiva judiciária. Haverá outras responsabilidades que nos escapam.

Por exemplo?
Há planos de decisão política que ultrapassam a Eurojust e as investigações. Mas o nosso apoio tem sido procurado e tem sido eficiente.

Muitos destes refugiados vêm da Síria e países do norte de África. O facto de não haver um diálogo directo com estes países é uma dificuldade em termos de cooperação?
Claro que sim. E mesmo que houvesse acordos, o problema era saber se eles seriam viáveis na prática. Há zonas onde o Estado praticamente desapareceu. Mas temos feito um esforço muito grande para tentar estabelecer acordos de cooperação com alguns desses países, nomeadamente com os que têm uma situação política e judiciária mais estabilizada, por exemplo, com Marrocos e a Tunísia. Estes acordos, é certo, têm algumas restrições ligadas à possibilidade ou não de transmitir dados pessoais, uma vez que, em alguns países, os sistemas não correspondem aos parâmetros que a UE exige nessa matéria.

Falando de terrorismo. Os recentes ataques em Paris e Bruxelas revelaram muitas deficiências ao nível da cooperação e troca de informação. O que tem de mudar e que papel desempenha a Eurojust na resolução deste problema?
Poderá haver problemas, como a troca de informação ao nível de outras agências ou serviços, que não nos dizem respeito. O nosso trabalho desenvolve-se no âmbito de processos judiciais. E, nessa perspectiva, não posso dizer que tenha havido limites na colaboração entre os Estados membros. Pelo contrário: há um espírito muito grande de entreajuda e resposta rápida. Há ainda os correspondentes nacionais para a Eurojust, que, nestes casos, facilitam muito a cooperação imediata entre países distintos.

A decisão do Conselho da União Europeia que estabelece um conjunto de comunicações obrigatórias (nome de suspeitos, inquéritos em curso, etc.) à Eurojust em matéria de contra-terrorismo está a ser cumprida pelos Estados membros em geral, e por Portugal, em particular?
Portugal tem cumprido, com rigor e em tempo, as comunicações que, nesta matéria, tem de fazer à Eurojust.

O que está a ser feito, em concreto, quanto à resposta judicial sobre o regresso dos chamados ‘combatentes estrangeiros’ ligados ao Estado Islâmico?
Estamos a apoiar investigações em curso em vários países, a quem, além disso, fornecemos materiais e técnicas de investigação. Há depois uma questão que tem sido muito discutida ultimamente sobre uma política judicial que privilegie medidas de desradicalização. A UE tem-no defendido muito, como alternativa ou em simultâneo à perseguição penal, mas o que é uma política de desradicalização? E qual o alvo? É preciso ser rigoroso na definição do que se pretende.

Mas a ideia é criar um conceito jurídico novo?
O problema é esse. Está a utilizar-se esse conceito como se fosse jurídico quando, de alguma maneira, é difícil em termos jurídicos saber quem será o alvo de uma política dessa natureza. É claro que esta será a melhor política, porque, embora haja casos em que terá mesmo de haver condenação, noutros é importante ter uma abordagem diferente. Mas esta questão é difícil e tem contornos ainda mal definidos, pelo menos na perspectiva do direito.

Há quem diga, nomeadamente a Presidente da Eurojust, que é preciso uma abordagem comum para atacar um problema comum.
Em direito haverá sempre interpretações diferentes. Mas tem de haver muito cuidado sobretudo na definição dos conceitos: o que é um combatente, o que é treino… sob pena de, a certa altura – e não digo que vá acontecer –, alguém lembrar-se de utilizar um instrumento desses para fins distintos dos que, de facto, foram pensados pelo legislador Europeu.

Quer explicar melhor?
Não. Até porque uma tal explicação poderia dar más ideias a quem ainda não as teve e a Europa hoje não é só habitada por democratas.

A Eurojust pode ajudar os Estados membros a perceber qual o país que tem um sistema mais eficaz?
Não podemos fazer forum shopping. Podemos, sim, saber qual o país que está juridicamente em melhores condições para desenvolver uma investigação — é até possível transferir um processo para outro país com acordo de ambos —, mas não podemos andar à procura do país que permite condenações mais fáceis ou rápidas. E há um cuidado muito grande, nomeadamente em casos de terrorismo, em não permitir que as autoridades judiciárias passem processos para outros países por razões deste tipo.

Tem noção de quantas acusações houve nos últimos anos?
Sabe-se que está a aumentar o número de acusações, e também de condenações, mas ainda não é possível, num período tão curto, estabelecer uma relação imediata entre umas e outras, isto é, saber em cada ano quantas acusações deram origem a condenações é uma questão complexa para a qual ainda não se encontrou um instrumento de aferição absolutamente exacto.

De que forma é que o fenómeno dos "combatentes estrangeiros" tem afectado Portugal?
Até agora, não sofremos nenhum atentado de natureza religiosa, mas já houve vítimas portuguesas noutros países, como a França e a Tunísia, e temos acompanhado o desenvolvimento dessas investigações.

Mas sabe-se que há inquéritos em curso relacionados com o Estado Islâmico. As autoridades Portuguesas alguma vez solicitaram o apoio da Eurojust neste âmbito?
Mas se calhar não implicam, neste momento, cooperação judiciária. Ao gabinete nada foi pedido. As autoridades Portuguesas estão, de resto, a par da nossa capacidade nesta matéria.

No geral, em que áreas criminais Portugal tem pedido mais apoio?
As fraudes – desde as burlas comuns e informáticas às fraudes fiscais – estão no topo dos pedidos. O tráfico de droga e o branqueamento de capitais vêm a seguir. São crimes que, pela sua natureza e modo de cometimento, prosperam bem no ecossistema do crime internacional organizado. Depois, com importância semelhante em termos de meios disponibilizados, referiria o tráfico de seres humanos.

A verdade é que as estatísticas mostram que, comparando com outros Estados membros, Portugal ainda recorre pouco a este organismo: tem menos casos e sobretudo organiza e participa em muito poucas reuniões e ainda menos em equipas de investigação conjunta. O que pode explicar isto? Considera que há um certo alheamento da magistratura em relação aos instrumentos de cooperação europeus?
Há muitos pedidos feitos e satisfeitos diariamente, de maneira relativamente informal, e que não dão origem à abertura de casos formais. Outros países têm uma política diferente, o que lhes permite apresentar uma estatística maior. Por outro lado, convém lembrar outro aspecto: ao contrário de outros países do centro da Europa, que têm duas ou três fronteiras e que por isso são mais solicitados independentemente da sua dimensão ou população, Portugal está numa posição periférica, só faz fronteira com Espanha (com quem partilhamos muitos casos), o que também influencia o volume do fenómeno criminal transfronteiriço.

Mas os magistrados estão sensibilizados o suficiente para estes mecanismos?
É evidente que podem estar sempre mais e por isso é que, nos últimos dois anos, temos vindo a desenvolver acções de sensibilização e formação em todas as comarcas do país para explicar o que é e como funciona a Eurojust. Foram também criados, recentemente, pontos de contacto em todas as novas comarcas e esta rede especializada vai, sem dúvida, potenciar os pedidos de cooperação.

Qual a dimensão e eficácia das equipas de investigação conjuntas nos Estados membros?
No ano passado, a Eurojust apoiou financeiramente 68 equipas e recebeu 13 candidaturas a apoio para constituição de equipas com estados terceiros. Este instrumento é muito útil e evita o uso de cartas rogatórias. E, na maioria dos casos, tem sido eficaz, mas é preciso saber bem o que se pretende.

Em que casos são mais eficazes?
Nós, por exemplo, organizámos duas equipas em casos relacionados com tráfico de seres humanos, outra para tráfico de droga e outra relacionada com criminalidade económico-financeira. Do que sei, têm dado bons resultados, porque houve uma selecção criteriosa do seu uso – por vezes, há culturas de trabalho muito diferentes entre os países e, para que estas equipas sejam eficientes e não se obstruam a si próprias, é preciso um trabalho muito bem feito.

Mas nem sempre a Eurojust as financia. Será por isso que usamos tão poucas vezes?
Não tivemos, até agora, razões de queixa nesta matéria.

Como viu a Eurojust a recente decisão de retirar os gabinetes da Europol e Interpol da dependência da Polícia Judiciária, por decisão do Conselho Superior de Segurança Interna?
Não nos pronunciamos sobre questões internas relacionadas com outras agências europeias.

Que marca é que quer deixar neste seu mandato?
Os marcos são normalmente muito efémeros. O que mais me importa é transformar a mentalidade e a cultura da utilização da Eurojust. É esta marca que gostaria de deixar: permitir que os magistrados utilizem este organismo como um instrumento normal de trabalho, de uso fácil e comum, e não um mero gabinete com pessoas muito especiais que para ali estão à parte e pouco têm a ver com a vida comum dos tribunais e do MP. E isso será mais fácil agora com esta nova rede de magistrados especializados que são os nossos pontos de contacto nas comarcas. Queremos, aliás, que venham cá estagiar para terem uma percepção mais real da Eurojust. A nível externo, gostaria de continuar a assegurar a grande eficiência, competência e simpatia que os meus antecessores sempre transmitiram. Somos muito bem vistos aqui e um dos motivos é porque somos capazes de responder muito rapidamente aos pedidos. Apesar de todos os defeitos do nosso sistema, conseguimos dar uma resposta genericamente muito mais rápida do que outros países.

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