Inquérito demoliu argumentos de Blair para justificar invasão no Iraque

Comissão que investigou participação britânica diz que a guerra "não era o último recurso" e acusa antigo primeiro-ministro de ter exagerado deliberadamente a ameaça que representava o regime de Saddam Hussein.

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Tony Blair: "Continuo a acreditar que tomei a decisão a correcta" AFP

Treze anos é pouco tempo para escrever a História de uma guerra que mudou o Médio Oriente, deixou marcas profundas nos países que nela participaram e destapou novas ameaças. Mas o relatório da comissão de inquérito ao envolvimento britânico na invasão do Iraque – um trabalho ciclópico de 2,6 milhões de palavras – promete moldar durante décadas a narrativa oficial. E o veredicto é muito severo para o governo de Tony Blair, alegando que o antigo primeiro-ministro decidiu a invasão sem ter antes esgotado todas as outras opções disponíveis e exagerou, de forma deliberada, a ameaça que o regime de Saddam Hussein representava.

Se o tempo é curto para fazer História, uma eternidade parece ter passado desde que, na madrugada de 20 de Março de 2003, o Presidente norte-americano, George W. Bush, anunciou na televisão que a guerra para derrubar Saddam tinha começado, perante o que dizia ser a recusa do líder iraquiano em entregar as armas de destruição maciça.

No Iraque, pelo menos 150 mil pessoas morreram desde então (outras estimativas apontam para 600 mil), o ditador desapareceu, mas com ele desapareceu a máquina do Estado – hoje o país continua em guerra, ameaçado pelo terrorismo, as tensões sectárias e a paralisia das instituições políticas. Os Estados Unidos retiraram em 2011, somando quase cinco mil soldados mortos, mas apesar de as forças americanas terem regressado em 2014 para combater o autoproclamado Estado Islâmico, Washington arrumou a guerra na prateleira do passado – o Presidente Barack Obama, eleito em 2008, votara contra a guerra e fez da retirada um ponto de honra.

Em Londres, o Governo também mudou de mãos e as preocupações são hoje outras. Mas como escrevia segunda-feira o Financial Times a participação no conflito assombra ainda a política britânica. Pelas sequelas que deixou na política externa (hoje menos favorável ao intervencionismo, como se viu em 2013 quando o Parlamento recusou intervir na Síria) e sobretudo na credibilidade dos políticos. Feridas que Gordon Brown, sucessor de Blair em Downing Street, quis fechar quando, em 2009, pediu a John Chilcot, um antigo alto quadro da função pública, que investigasse as circunstâncias em que foi decidida a participação britânica na guerra e a forma como a operação e o pós-invasão foram planeados e executados.

Ninguém pensou que demorasse tanto – as famílias dos 179 soldados mortos chegaram a fazer um ultimato para que o relatório fosse publicado –, mas cinco anos depois das últimas audições (e foram mais de uma centena) Chilcot não gorou as expectativas de quem queria ouvir um veredicto claro sobre o que o Governo britânico de então fez e deixou por fazer. “As conclusões são claras como água, civilizadas – mas sem sombra de dúvida totalmente condenatórias – ainda que talvez não haja grandes surpresas”, escreveu Laura Kuessenberg, editora de Política da BBC. O jornal Guardian chamou-lhe “veredicto demolidor”; o Telegraph uma “crítica devastadora”.

"Informações erradas"

Na apresentação do relatório, Chilcot começou por dizer que Saddam “era sem sombra de dúvidas um ditador brutal”, mas afirmou que Londres avançou para a guerra sem que o regime iraquiano constituísse uma “ameaça iminente”. “Concluímos que o Reino Unido escolheu participar na invasão do Iraque sem antes terem sido esgotadas as opções pacíficas para o desarmamento” do regime de Saddam. “A acção militar, naquele momento, não era o último recurso.”

Blair, tal como Bush, insistiram sempre no contrário – que o ditador iraquiano tinha falhado sucessivos prazos para se desfazer dos seus arsenais químicos e biológicos e que, deixá-lo mais tempo em Bagdad, era arriscar que as armas pudessem cair nas mãos de terroristas. Arsenais que os inspectores das Nações Unidas duvidavam já então que existissem e que, meses depois da invasão, se provou que Saddam não tinha.

“É agora claro que a política para o Iraque foi feita com base em informações e avaliações erradas. Informações que não foram questionadas, quando o deviam ter sido”, disse Chilcot. Uma falha que é, em primeiro lugar, dos serviços secretos que trabalharam sempre com base na presunção de que as armas existiam, sem nunca terem questionado esse pressuposto.

Mas o relatório acusa Blair de ter ido mais longe, exagerando deliberadamente a ameaça que os supostos arsenais iraquianos representavam, nomeadamente quando, em Setembro de 2002, disse no Parlamento que os serviços secretos tinham concluído “sem margem para dúvidas” que Saddam voltara a produzir armas químicas e biológicas. Certas conclusões “foram apresentadas com um grau de certeza que não se justificava”, afirmou o responsável pelo inquérito, sugerindo que as convicções pessoais do líder trabalhista e da equipa que o rodeava – bem como as informações recebidas de Washington – terão sido essenciais na decisão de avançar para a guerra.

Uma decisão que o primeiro-ministro britânico teria tomado vários meses antes de obter a autorização do Parlamento, como sugere um dos 31 memorandos que enviou a Bush e que agora foram divulgados. “Estou contigo, aconteça o que acontecer”, escreveu Blair, em Julho de 2002, numa nota em que tentava convencer o Presidente americano a não desistir de obter o aval das Nações Unidas a uma intervenção. Blair insistiu sempre que, para Londres, era vital estar ao lado do seu principal aliado internacional, mas esse é um argumento que o relatório não acolhe, alegando que a força da “relação especial” tinha já sobrevivido a outras crises.

"Melhor sem Saddam"

O relatório também desmonta o argumento de que era impossível prever, à luz do que então se sabia, as consequências desastrosas que o derrube do regime de Saddam poderia ter – as tensões sectárias, o risco de ingerência estrangeira ou a infiltração da Al-Qaeda “foram explicitamente identificadas antes da invasão” – e acusa as chefias políticas e militares de terem “subestimado” as ameaças. Chilcot acrescenta ainda que o planeamento da fase posterior à invasão foi “totalmente inadequado” e acusa as chefias militares de terem enviado os soldados para a frente sem a preparação e o equipamento necessários.

Blair não podia deixar que a narrativa do dia se fizesse sem a sua versão, sobretudo depois de familiares de soldados mortos terem anunciado que vão estudar o relatório para apurar se há bases para processos judiciais. E de o líder trabalhista Jeremy Corbyn, que em 2003 encabeçou a oposição à guerra, ter pedido desculpa em nome do partido pela “decisão desastrosa” do antecessor.

Numa conferência de duas horas, descreveu a decisão de entrar na guerra como “a mais agonizante” que já tomou e disse lamentar “mais do que alguém pode saber ou imaginar” tudo o que correu mal – “as informações que tínhamos revelaram-se erradas, o pós-guerra tornou-se mais hostil e sangrento do que imaginaramos, uma nação de pessoas que se queriam ver livres da maldade de Saddam tornaram-se vítimas do terrorismo sectário”.

Disse, no entanto, que o relatório provou que ele não mentiu ao Parlamento, não falsificou documentos e agiu “de boa-fé”. “Continuo a acreditar que tomei a decisão a correcta”, afirmou, acrescentando que, apesar de todos os erros, o Iraque “está melhor sem Saddam”.

 

 

 

 

 

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