Cá em baixo

Estamos aqui, somos a sério, somos reais, ao contrário dos números do Schäuble e do Subir Lall e dos outros senhores que dizem coisas

Leon Seierlein/Unsplash
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Lá de cima parecemos números, tendências, taxas disto e daquilo, movimento confuso e irracional, cá em baixo vivemos.

O garoto da miúda do café já anda, equilibra a custo o rabo enfraldado e dá umas corridinhas curtas a furta-passo seguido pela mãe de mãos abertas. Embasbaca-se perante todos os homens de cabelo branco, se calhar a confundi-los com algum avô que lhe caiu no goto. Serve de pretexto para conselhos de maternidade não requeridos das velhas do bairro, ele pode não ter um avô a cada esquina, mas a mãe tem sogras a sobejar. Dobra-se para apanhar uma coisa do chão a que quase consegue descobrir o sabor, ao fim dum quarteirão cansa-se da aventura e estende os braços aos grandes.

A mulher-a-dias cabo-verdiana tem a mãe doente lá em Santiago, tem de ir e regressar, ver se o tratamento está a resultar, tem de tratar dos papéis muito bem tratadinhos para sair e voltar a entrar em Schengen sem engulhos, tem de combinar a folga com as patroas todas (nalguns casos arranjar uma amiga que a substitua temporariamente sem lhe roubar o posto) e ainda com a empresa para quem limpa escritórios antes de ir para as casas dos brancos. Tem de deixar as refeições alinhadas aos filhos, senão vão andar o tempo todo a comer porcarias.

A adolescente já fez as provas de Português e de História de acesso à universidade, ainda lhe falta Voz, Movimento, Monólogo e Improvisação porque é uma romântica e quer ir para Teatro. Está a passar aquele Verão de estômago colado ao coração que todos os candidatos ao ensino superior viveram um dia, ri-se com as amigas do inevitável vídeo do Hitler a berrar com os generais, desta vez legendado de maneira à indignação do führer lhe vir da matéria para a prova de Português. Lê Tennessee Williams no original por entre os “tem calma!” inúteis e paternalistas dos velhos, dos velhos mais invejosos que solidários com aquela vida nova a desabrochar.

A velha tem os pés muito inchados, se se descuida a rezar o terço e os deixa pendurados enegrecem à altura dos calcanhares e obrigam-na a andar devagarinho, uma mão na bengala outra na parede. A filha e a neta levam-na à acupunctura, que é uma palavra que ela não sabe dizer, por isso diz só que foi ao Sérgio, que é o nome do acupunctor, e aquilo alivia um pedaço. Hoje o apoio domiciliário do lar trouxe almôndegas com esparguete e salada, é suposto ser só para o marido que está pior do que ela, mas é muita comida e eles de toda a maneira comem como pássaros por isso chega para os dois. Estava tudo muito saboroso.

O pai agacha-se para abraçar a filha que passou a noite nos avós, ela deita-lhe a mão aos óculos, que já não estavam muito curiais, e dá cabo do resto. O encaixe duma das hastes à vida, partidinho de todo, sem arranjo diz o optometrista de bata. Sem paciência para ir escolher armações novas, escolher armações é uma chatice para os caixa-de-óculos, é escolher que cara vais ter nos próximos anos, daí as figuras que fazemos em frente aos espelhos das ópticas (os 100/100 não fazem ideia). Duas gotas de super-cola e dois centímetros de fita-gomada e dá um jeito na coisa, pelo menos até receber, pode ser que dê para se aproveitarem as lentes.

Lá de cima parecemos números, tendências, taxas disto e daquilo, movimento confuso e irracional, cá em baixo corremos, saltamos, respiramos, chateamo-nos uns com os outros, às vezes cantamos, dançamos, discutimos, conversamos, choramos, gritamos, amamo-nos, vivemos. Estamos aqui, somos a sério, somos reais, ao contrário dos números do Schäuble e do Subir Lall e dos outros senhores que dizem coisas.

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