“Temo que a zona euro passe por muitos anos de baixo crescimento”

Adair Turner, presidente do Institute for New Economic Thinking, diz que o sistema financeiro está agora mais resistente do que em 2008, mas alerta que existe o risco de o “Brexit” ajudar a empurrar as economias para a recessão.

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Adair Turner foi responsável pela entidade reguladora dos serviços financeiros no Reino Unido Enric Vives-Rubio

Adair Turner é um dos economistas que mais destaque tem tido na defesa de políticas bem mais radicais de estímulo monetário e orçamental, argumentando que na Europa é necessário que os défices comecem claramente a ser financiados pelos bancos centrais para evitar um cenário semelhante ao da Grande Depressão. Em relação ao impacto do “Brexit”, o ex-líder da entidade reguladora dos serviços financeiros no Reino Unido, que falou ao PÚBLICO à margem do Fórum do BCE realizado em Sintra, diz que “o problema agora não está tanto a resistência do sistema financeiro em si mesmo”, mas sim “nos golpes adicionais na confiança e na procura agregada numa economia global que já está a sofrer de uma deficiência na procura agregada”.

Os mercados parecem agora estar a digerir com mais tranquilidade o “Brexit”. Isto significa que afinal não existe o risco de se transformar numa crise financeira de grande dimensão?
O “Brexit” é algo que eu lamento profundamente, algo que me perturba muito do ponto de vista pessoal porque sinto que a minha identidade é multifacetada e inclui uma componente europeia muito forte. Mas deixando isso de lado, não me tem surpreendido a reacção dos mercados. O impacto negativo inicial foi forte, como esperado, e depois já se voltou um pouco para trás ao nível das acções. Onde penso que as perdas não serão recuperadas será na libra, que está agora a um nível bastante mais baixo e deverá manter-se lá. Agora, aquilo que certamente não aconteceu e que já esperava não vir a acontecer é uma crise financeira do estilo da crise provocada pelo Lehman Brothers, isto é, em que se assiste a um efeito dominó em que diversas entidades caem uma a seguir a outra.

Qual o motivo para se conseguir agora evitar esse cenário mais grave?
Penso que o sistema financeiro internacional se encontra agora num posição mais forte, com maior capacidade de resistência, por causa das reformas que foram entretanto realizadas. Não acredito que agora se registe um agravamento sucessivo da crise, como aconteceu no passado. O que eu acho que vai acontecer é um crescimento económico mais lento, principalmente no Reino Unido, mas também na União Europeia. A razão é simples. Temos muitas empresas e indivíduos que neste momento simplesmente não sabem como é que isto vai acabar dentro de três anos. E quando existe este tipo de incerteza, um pouco por toda a economia centenas de milhares de pessoas e empresas tomam decisões. Uma pequena empresa com dez empregados e estava a pensar em contratar mais um, começa a pensar se não será melhor adiar essa decisão mais algum tempo para ver o que acontece. Noutro local, uma família que estava a pensar em fazer obras de ampliação na casa, acaba por decidir ser agora mais prudente parar. Ao mesmo tempo, um banco que estava a emprestar dinheiro a empreiteiros até 70% do valor da propriedade passa a exigir um pouco mais. É a acumulação de todas essas microdecisões que faz as economias abrandarem. Claro que as economias estão sempre sujeitas a choques na confiança, mas o preocupante é que, enquanto em 2008 os bancos centrais puderam reduzir as taxas de juro, agora temos estes efeitos de depressão na economia num ambiente em que os bancos centrais, tanto no Reino Unido como na zona euro, não têm espaço de manobra para contrariar através da política monetária tradicional.

Podemos ter uma nova recessão?
O resultado muito provável disto é um crescimento mais lento no Reino Unido e na zona euro. Mas não sei se irá tão longe que produza uma recessão técnica, com dois trimestres consecutivos de contracção da economia. Uma das coisas que pode compensar os efeitos negativos no Reino Unido é a depreciação da libra, que acaba por estimular as exportações do país.

O problema é então a incerteza?
Sim. Com o referendo não ficou tudo decidido. O que ficou decidido foi que o Reino Unido não será um membro completo das estruturas políticas da União Europeia. A partir daqui, há toda uma série de soluções que podem vir a ser adoptadas. Há uma solução do tipo da Noruega, em que há um acesso total ao mercado único, mas em que também se tem de aceitar o pagamento de contribuições financeiras e algum movimento livre de pessoas. Há a situação suíça, que é um pouco mais moderada. E há ainda a hipótese de um corte total, com as regras comerciais a serem as que estão previstas para os membros da Organização Mundial do Comércio. Vai levar algum tempo até que se perceba exactamente para onde é que se está a caminhar. O mais atractivo, acho eu, é uma solução tipo Noruega. E se acabarmos com essa solução, penso que o impacto negativo na economia não será muito grande. Em todo o caso, há sempre o impacto negativo de ter de se passar por este período intermédio de incerteza.

Portanto, sendo um opositor do “Brexit”, o que acha agora que é o melhor é resolver a questão rapidamente.
Sim, e penso que a decisão pode ser rápida se o governo britânico tornar claro que aquilo que gostava que acontecesse era uma solução do tipo da Noruega. Ou pelo menos alguma coisa parecida. E se do lado europeu não se optar por uma espécie de zanga de divorciados, fazendo-se uma avaliação inteligente daquilo que é melhor para os interesses comuns, pode tornar-se óbvio num espaço de um ano ou um ano e meio que se está a caminhar para essa solução. Esse seria provavelmente o melhor resultado em termos de impacto económico.

Não sair da UE já não é uma possibilidade?
Eu diria que há uma probabilidade de 5% de isso acontecer. A única maneira de o Reino Unido não sair da UE é, tendo em conta que a imigração foi o principal motivo para o resultado do referendo, haver um novo olhar para a livre circulação de pessoas. Se houver pressão de outros países nessa questão e se se chegar a uma regra que diga que a livre circulação se deixa de aplicar se a imigração líquida atingir determinado valor, então é possível imaginar um governo britânico a dizer: “ok, posso pensar sobre isto outra vez”. Mas a verdade é que algumas vezes, como dizemos em Inglaterra, “não podemos pôr o Humpty Dumty inteiro outra vez”. Depois de um ovo estar partido, dificilmente o voltamos a reestruturar, mesmo que isso seja a coisa lógica a fazer.

O que é que quer dizer quando afirma que estamos agora melhor preparados do que estávamos na crise de 2008?
Os bancos têm muito mais capital, mais liquidez. A forma como gerimos o mercado de derivados é muito melhor. Há muito menos destas estruturas bancárias sombra que têm todos esses produtos financeiros que são transaccionados de formas opacas que nós nem sequer compreendemos. E isso é fácil de se ver. Se algo como o “Brexit” tivesse acontecido na Primavera de 2008, teria sido isso que teria deitado o sistema abaixo antes do Lehman Brothers o ter feito. Antes, tínhamos estas instituições alavancadas de uma forma incrivelmente elevada, em que no momento em que uma delas tinha problemas, outra e outra ficavam também com problemas. O sistema agora tem mais resistência. O problema agora não é tanto a resistência do sistema financeiro em si mesmo. O problema está nos golpes adicionais na confiança e na procura agregada numa economia global que já está a sofrer de uma deficiência na procura agregada. É com isso que temos de nos preocupar.

Defender agora uma maior desalavancagem do sector financeiro não poderá ser nesta altura um ainda maior golpe na procura agregada?
É preciso separar duas coisas. Nós temos um problema porque criámos demasiada alavancagem privada antes da crise. Por isso, devemos ter um debate sobre o que é que devíamos fazer se pudéssemos começar tudo de novo e para que, dentro de 20 anos, tenhamos um sistema que não crie tanta alavancagem. Mas depois temos de voltar um pouco atrás e reconhecer que estamos onde estamos e que algumas das coisas que faríamos para criar um sistema mais estável no longo prazo, se fossem aplicadas imediatamente, tornariam a situação actual ainda pior. Se de repente tentássemos dizer a todos os bancos para desalavancarem, tornaríamos a situação ainda pior para o crescimento e para a debilidade da procura agregada. Eu diria que temos de lidar com este nível elevado de dívida que temos actualmente em todo o mundo. Eu não apertaria neste momento ainda mais as exigências de capital dos bancos, deixaria estar como estão actualmente. E tentaria que houvesse, no maior número possível de países do mundo, políticas de estímulo orçamental.

E como é que isso seria financiado?
Se necessário, com dinheiro do banco central. É aquilo a que se chama “atirar dinheiro do helicóptero” (helicopter money), isto é, colocar o banco central a pagar os défices. O objectivo seria o de pôr a economia a crescer outra vez, criando um ambiente onde a procura nominal está a crescer suficientemente rápido. Assim conseguimos reduzir o peso da dívida nas nossas economias, não através de um pagamento da dívida, mas pelo facto de a dívida se manter estável e a economia crescer. Esta é, na história, a única maneira de o conseguirmos de uma forma bem-sucedida. Ou então isso é feito através de catástrofes em que há enormes cancelamentos de dívida. Foi o que aconteceu entre 1929 e 1933 nos EUA. Os bancos foram à falência, os agricultores também, as empresas também. Mas isso não correu bem: nos EUA criou 25% de desemprego e na Europa criou o fascismo. Se não queremos ir por esse caminho, o melhor é tentar pôr a economia a crescer o suficiente, garantir que temos uma inflação mais alta. E temos de fazer isso ao mesmo tempo que planeamos um novo sistema que no futuro impeça que todos os mesmos erros sejam cometidos outra vez.

Acredita que políticas dessas, incluindo política orçamental expansionista e “atirar dinheiro do helicóptero” são neste momento politicamente exequíveis?
Bom, na Europa não vejo isso a acontecer brevemente. Mas já está a acontecer na prática no Japão. Neste momento, as autoridades japonesas negam que estejam a aplicar estas medidas, mas a verdade é que o banco central japonês está a comprar títulos de dívida pública do país a um ritmo de 80 biliões de ienes ao ano, enquanto o governo japonês apenas os está a emitir a um ritmo de 40 biliões de ienes ao ano. E vamos chegar ao dia, dentro de alguns anos, talvez em 2020 ou 2021, em que não haverá títulos de dívida pública japonesa à venda ou pelo menos que não sejam detidos por entidades que sejam propriedade do governo do Japão ou pelo banco central. E as pessoas vão-se questionar: afinal o que é que está a acontecer aqui? Aquilo que se tem vindo a assumir até agora é que o Estado japonês, tendo acumulado toda esta dívida, vai eventualmente registar um excedente primário grande o suficiente para amortizar. Eu não acredito que esse seja um cenário credível. Também se assume que o banco central vai acabar por vender ao sector privado toda a dívida que tem vindo a adquirir. Também me parece que esse é um cenário muito pouco credível. Por isso, aquilo que está a acontecer no Japão é uma verdadeira monetização da dívida e a crescente compreensão de que é isso que está realmente a acontecer vai ser um estímulo para que haja um debate mais aberto em todo o mundo sobre a utilização do helicopter money.

Mas é preciso que essa política resulte no Japão...
No Japão o que está a faltar é um verdadeiro estímulo orçamental. Estão a caminhar para isso, mas não o suficiente. Apenas o estímulo monetário não vai chegar. E têm de dizer: não nos devemos preocupar com a dívida que estamos a acumular porque ela vai ser comprada pelo banco central. Se se disser isto, mesmo não assumindo que se trata de “atirar dinheiro do helicóptero”, toda a gente sabe que verdadeiramente isso é “atirar dinheiro do helicóptero”.

Na Europa, o que é que bloqueia a possibilidade de utilização destas políticas?
Na Europa, isto é um desafio político muito mais difícil. No Japão, há um governo um banco central e uma população. Por exemplo, se houver um consenso de que é preciso uma redução de impostos, não há qualquer dúvida que essa redução é para a população japonesa. É imensamente mais complicado conseguir um acordo político quando há dúvidas sobre quem beneficia e quem paga eventuais medidas. Se alguém disser “vamos perdoar dívida”, de imediato surgirá a questão: “A dívida de quem? A de Portugal? Da Grécia? Da Alemanha?”.

Não há forma de se ultrapassar isto?
Alguns economistas sugeriram soluções, como realizar um corte de impostos simultâneo e proporcional em todos os países da zona euro, algo que seria pago essencialmente pelo BCE. Portanto, teoricamente é possível ultrapassar estes problemas de justiça na distribuição dos benefícios. O problema é que estamos numa situação de grande desconfiança na Alemanha de que qualquer acordo desse tipo seria para beneficiar ou a Grécia, ou Portugal ou a Itália. E uma suspeita que isso retiraria a pressão sobre esses países para que realizem reformas estruturais. O que me preocupa é que é mais importante para a Europa do que para o Japão adoptar políticas radicais de estímulo da procura, mas a probabilidade que tal venha a acontecer é bem menor. Temo que a zona euro fique presa por muitos anos num cenário de baixo crescimento e baixa inflação. Não é um desastre completo, não é um colapso, mas é crescimento baixo, baixa inflação e as pessoas, empresas e Estado sobrecarregadas pela dívida.

E o que é que um país como Portugal pode fazer por si neste cenário?
Não tem muito grau de liberdade. Não pode imprimir dinheiro, não pode monetizar a sua dívida. Pode talvez tentar organizar o melhor possível uma limpeza do crédito mal parado, para que o sistema bancário possa depois concentrar-se em emprestar mais dinheiro às boas empresas, em vez de as deixar ali presas para sempre e a deprimir a economia.

Mas para isso é preciso recapitalizar os bancos...
Sim, é preciso, o que significa um novo encargo para a dívida pública, numa altura em que esta já é bastante alta. Portugal não tem muita liberdade.

Portugal deve preocupar-se com o facto de os seus bancos serem crescentemente detidos por estrangeiros?
Os bancos serem detidos por estrangeiros até tem uma vantagem, porque significa que se houver problemas, o risco é de alguma forma partilhado com outros países porque o dono estrangeiro absorve alguma parte das perdas. É melhor do que ser tudo absorvido por Portugal. Um dos problemas que há num país pequeno ter um sistema bancário detido nacionalmente é o que se houver crédito mal parado na economia isso afecta os bancos que operam nessa economia e isso por sua vez acaba por afectar ainda mais a economia. Grandes bancos pan-europeus são uma forma de partilhar o risco pelo resto da Europa. Se eu fosse português não estaria necessariamente muito preocupado com esse maior grau de integração com outros bancos.

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