Ser europeu sem país e sem pecado no corpo

Num dos espectáculos mais fortes da programação do Festival de Almada, Falk Richter cria em Città del Vaticano uma reflexão sobre quem é hoje a juventude europeia, atravessada pelas suas relações com a religião e a assistir à ascensão da extrema-direita.

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Città del Vaticano

Falk Richter acordou a meio de uma noite e teve a ideia espaventosa de que a peça que se encontrava a preparar precisava, em absoluto, da imagem que lhe ocorreu naquele momento de hesitação entre a vigília e o sono. Eram quatro da manhã e, como se não tivesse interrompido o sonho que estava a ter, escreveu de jacto a cena em que um grupo de rapazes abusados no Vaticano forma uma boy band para superar o trauma e acaba por vencer o Festival da Eurovisão. No ano seguinte, como faz parte dos regulamentos, a Eurovisão teria lugar no Vaticano, a cerimónia seria dirigida pelo Papa em latim na Basílica de São Pedro e todos os países acorreriam ao mais pequeno Estado do mundo para participar num culto razoavelmente distinto do habitual.

É um momento de comic relief, explica o autor e encenador alemão Falk Richter ao Ípsilon. Porque se a coreografia de boy band decalcada dos movimentos ultra sexualizados que tomaram conta dos videoclips responsáveis pela propagação da música pop (e hip-hop) pelo mundo, levada aqui a um exagero por vezes paródico, proporciona uma bolsa de comicidade numa peça que tem o humor como arma sempre a postos, a verdade é que Città del Vaticano nos aparece emparedada entre esse registo humorístico e o comovente, entre a piada (por vezes fácil), a crítica ácida e a confissão que, quando embrulhada em gargalhadas, apenas se torna mais pungente.

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Neste comic relief, no entanto, Richter sabe bem que está a mexer, mesmo que a traço grosso, com uma “forma ultra conservadora de dividir homens e mulheres – homens musculados que habitualmente ficam para ali a falar da sua masculinidade, e mulheres sempre com ar de prostitutas”, como que lutando pelo máximo de explicitação sexual sem chegar a vias de facto. A dança de Città del Vaticano cita este universo, mas a partir de “objectos sexuais tímidos que tentam libertar-se, porque estes continuam a ser homens traumatizados e reprimidos”. Não sendo propriamente a chave para o espectáculo, reclama modelos para os caricaturar e recusar. E como diz o actor Gabriel da Costa (descendente de portugueses) no monólogo final, “há 10 mil formas de ser homem e 10 mil formas de constituir família e 10 mil formas de amar outro humano.”

Se há, na verdade, uma chave para Città del Vaticano, texto em que Falk Richter parte em busca de explorar a relação de uma geração nascida na União Europeia com, precisamente, o conceito de Europa e com a presença da religião nas suas vidas, será esse monólogo em forma de carta destinada a um filho-por-vir: “O papá e os amigos estão a planear um mundo complexo para ti e esperamos que gostes”, diz Gabriel em palco. A realidade, advoga Richter, é demasiado rica para ser reduzida a conceitos “vindos de pessoas que tentam categorizar tudo para ficarem menos assustadas”. “Isso vem tudo do medo, porque a humanidade pode ser muito assustadora, na sua variedade tão difícil de organizar.” Città del Vaticano vive, acima de tudo, de uma ideia de recusa da simplificação da sociedade.

É uma peça fundada no presente. Estreada no Festwochen de Viena, em Maio deste ano, ganha agora novas ondas de reverberação na sequência da votada saída do Reino Unido da União Europeia e do ataque dirigido contra a comunidade LGBT na discoteca The Pulse de Orlando. Mas foi vista pela primeira vez em Viena nos dias em que Norbert Hofer, candidato da extrema-direita, ficou perto de vencer as eleições presidenciais austríacas. O populismo de Hofer, com um discurso e receitas simplificadoras, colheria sobretudo votantes fora das grandes cidades, levando por isso Richter a falar de “uma acentuada divisão entre as metrópoles e as zonas rurais”, frisando que “Paris, Lisboa e Berlim estão hoje mais próximas e mais ligadas entre si do que com as províncias dos seus países.”

O exemplo extremo, admite, pode encontrar-se em Donald Trump como simplificador de tudo. “É alguém que nega as alterações climáticas, a complexidade da política mundial e vende soluções muito simples para uma sociedade complexa apenas para conseguir votos. Venho de um país que teve 12 anos de um fascismo muito destrutivo e é terrível ouvir os argumentos dos novos movimentos de extrema-direita, porque soam muito semelhantes àquilo que já correu muito mal há 70 anos. Não percebo como é que as pessoas podem novamente acreditar que isto funciona.” Por isso, defende que a carta de Gabriel, resultado de uma colaboração escrita entre os dois, é um texto em defesa da beleza na complexidade mas também “símbolo de uma nova Europa, uma Europa sem lutas constantes uns contra os outros, sem conflitos armados e com abertura de fronteiras.”

Religião, Europa, extrema-direita

A temática de Città del Vaticano começou por ser abordada em The Complexity of Belonging, texto levado à cena no Festival de Melbourne. Nesse espectáculo, estreado em 2014, Falk Richter, em parceria com Anouk van Dijk, começou por se perguntar o que unia a população de uma antiga colónia europeia (a Austrália), o que fazia com que grupos e culturas, dos aborígenes aos descendentes dos criminosos ingleses para ali deportados e a toda a sorte de refugiados (os europeus em fuga da II Guerra Mundial, os asiáticos procurando colocar-se a salvo de vários cenários de guerra civil) constituíssem um país. Todas estas diferentes origens levaram Richter a questionar “o que significa ser australiano, como se encontram e quão importantes são as culturas de origem, venham do Vietname ou da Grécia.”

Ao regressar para a Europa, ele que é um dos encenadores da histórica sala berlinense Schaubühne, quis retomar a interrogação em relação à Europa. Retirado do texto final de Città del Vaticano, conta ao Ípsilon a actriz belga Tatjana Pessoa, sobrinha-bisneta de Fernando Pessoa (nasceu em Bruxelas, filha de mãe portuguesa e pai suíço), ficou por usar um excerto em que a Bélgica era também apresentada na sua improvável construção, puzzle francófono, flamengo e germanófono. “Isto, de alguma maneira”, diz Tatjana, “acaba por formar um país.” Esse conceito de nação, para alguém que fala cinco idiomas (Città alterna entre alemão, inglês e português) e viveu em vários países, é algo impreciso e de escassa utilidade. “Quando oiço alguém dizer ‘Vai-te embora para o teu país’ não percebo o que isso quer dizer. Espero nunca ter de escolher um país. Claro que posso escolher o sítio onde vivo e fazer parte da rede social e política desse lugar, mas isso é onde vivo, não é o sítio a que sinto que pertenço.”

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Regressado então à Europa, Richter juntou 20 actores com idade entre os 25 e 35 anos, falantes de 14 línguas diferentes, num workshop integrado na Bienal de Veneza. E as ferramentas de trabalho que lhes deu foram as perguntas “como é que são constituídas as nossas famílias hoje em dia?” e “quão importantes são as crenças religiosas na actualidade?”. Ao escavar nas biografias de cada um foi-se fascinando com o possível retrato do que é ser-se europeu naquele intervalo etário, de uma geração para a qual o programa Erasmus se tornou um ponto de encontro tão fundamental quanto a certeza de que a vida se pode construir em qualquer cidade do continente sem que isso implique necessariamente uma emigração forçada pela falta de condições no país-natal.

Dessa semana de trabalho resultou o elenco que agora apresenta Città del Vaticano (8 e 9 de Julho, no Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa, como um dos pontos altos do Festival de Almada), e que num segundo momento se dedicou a trabalhar sobre a religião e a ascensão da extrema-direita. A ideia era clara: como aceitar a crescente influência de movimentos nacionalistas por parte daqueles para quem as fronteiras pouco dizem e o apego a uma nacionalidade frequentemente fragmentada é algo de bastante diluído? Da bateria de perguntas de Richter foi, aos poucos, surgindo um texto que cola respostas e biografias vincadamente pessoais. E com esse ponto de partida em que se encontravam expostos diante de todos os outros, criou-se entre os oito intérpretes uma cumplicidade explorada também fisicamente em palco, reflexo e extensão de uma intimidade em que os corpos se tocam e procuram num desejo de contacto, de estar próximo, e de procura de afectos que se seguia a discussões matinais sobre a religião, a infância e a Europa.

“Às tantas, o trabalho físico funcionava também como resposta às perguntas que fazíamos, e descobríamos que acabava por interferir no texto da mesma maneira que os materiais de pesquisa, como a longa conversa que tivemos com alguém que nos esclareceu sobre muita coisa da extrema-direita actual”, descreve Tatjana. E, para Richter, o corpo surge ainda como vítima da religião, na sua tentativa de controlar a sexualidade: “Tentaram desligar o corpo de nós dizendo que era o reino de Satanás e era maléfico, cheio de pecado. O corpo pode assustar-nos porque faz coisas estranhas [risos] e não se pode controlar totalmente. Mas isso criou imensos traumas.”

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Falar de amor

Se a questão da família era central para Falk Richter dada a sua própria história pessoal – “venho de uma família dividida, metade na RDA, outra metade na RFA, em que não nos podíamos ver uns aos outros”, explica – e tudo isto se relaciona de forma muito directa com os ecos que o fechamento de fronteiras têm sobre o seu percurso, mais surpreendente acabou por ser o peso da religião. De tal forma que alastrou mesmo para o título da peça.

Convencido de que estes filhos da geração do amor livre teriam já uma ténue ligação à Igreja, descobriu em cada um dos rapazes do elenco uma história verdadeiramente traumática – desde situações de abuso sexual, participação em seitas de protestantes radicais ou passagem por repressivos colégios católicos. Mas a religião é convocada também porque Richter detecta uma discussão dos valores cristãos na Áustria e na Alemanha como “oposição à chamada islamização da sociedade e que é vista como uma grande ameaça para a humanidade”. Ao apontar para o Vaticano, “um Estado muito pequeno com um dos bancos mais corruptos do mundo”, quer, na verdade, fazer o que faz com cada um dos temas que emerge em Città del Vaticano: mostrar as suas fragilidades e denunciar a sua tentativa de impor modelos comportamentais ao resto do mundo (seja pela disseminação da culpa, seja pelo histórico de dizimação de outras culturas ao longo dos séculos).

 “Claro que há uma enorme diferença entre os valores que o Vaticano promove e os valores pelos quais se rege”, resume. “E essa é uma grande diferença em relação aos actores que temos em palco, que falam daquilo que fazem, daquilo que estão a tentar, daquilo que falham, daquilo em que erram, mas não fingem nunca levar vidas perfeitas quando por detrás não passa de uma mentira.” E, de facto, isso está sempre no osso de Città del Vaticano: a possibilidade de viver uma verdade pessoal sem vergonha, culpa ou medo de que tal possa ferir as sensibilidades de terceiros. “Estamos sempre a falar de amor”, conclui Gabriel. “Temos de nos saber amar.”

O Ípsilon viajou a convite do Festival de Almada

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