O Netflix não é só séries, mas ainda lhe falta muito cinema

Vasculhámos alguns dias pelos cantinhos do serviço de streaming a ver que cinema se pode encontrar por lá. A escolha ainda é reduzida, mas há zonas intrigantes.

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É, de longe, a categoria onde o Netflix triunfa de longe e mete a concorrência no chinelo: os documentários - na foto, What Happened Miss Simone? de Liz Garbus, sobre Nina Simone
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O cinema clássico é talvez a maior lacuna do serviço português, e aquela onde as falhas são mais evidentes: meia-dúzia de títulos evidentes, como Há Lodo no Cais de Elia Kazan,
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A escolha é mais interessante nos indies americanos, com filmes, como Moon, de Duncan Jones, que mereciam ter tido outra atenção nas salas e podem agora ser descobertos com outra disponibilidade
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Encontrámos apenas três portugueses, dois filmes de João Canijo e É na Terra, Não é na Lua de Gonçalo Tocha

Era o sonho utópico universal permitido pela globalização da rede: a internet permitiria libertar os arquivos e tornar de súbito todos os filmes acessíveis a toda a gente em todo o mundo. Mas era um sonho. Por muito que o jornalista Chris Anderson apregoasse, com a sua teoria da longa cauda, que a inexistência do objecto físico deixaria de ser um problema, com os servidores globais a permitirem a leitura, a impressão ou a gravação on demand de um disco, um livro ou um filme que já não existia nas lojas onde e quando o consumidor o desejasse, esse futuro continua a estar no futuro. Porque a mão de ferro dos detentores de direitos e a sua insistência na rendibilização do acervo para compensar as perdas monetárias resultantes da revolução mediática continua a impossibilitá-lo.

Já nos dissera numa entrevista há uns anos o veterano crítico e arquivista Dave Kehr: isto do século XXI ser um novo mundo para a cinefilia é treta, talvez nunca tenha havido menos filmes de arquivo disponíveis oficialmente como hoje. A digitalização de um filme continua a não ser barata e os tempos em que o video permitia ajudar a rendibilizar esses custos já lá vão. É por isso que, para onde quer que olhemos, a dieta cinematográfica nos canais de televisão está mais formatada do que nunca e dirigida com mão de ferro pelos grandes estúdios americanos. Há dez ou quinze anos, por exemplo, o Canal Hollywood era dos poucos sítios onde ainda se podia ir vendo muito do cinema popular, americano e europeu, dos anos 1950 a 1970 – fonte que foi secando com os anos, ao ponto de ser preciso ir estando com muita atenção às grelhas de programação para descobrir pérolas cinéfilas. Hoje, esse papel de ”arquivo” vai sendo preenchido por um ou outro canal que vai permitindo assistir em casa com alguma regularidade a cinema clássico, mesmo que maioritariamente americano e do catálogo dos estúdios.

A expectativa, por isso, em relação ao que se poderia ver no serviço de streaming online da Netflix era grande – mas a verdade é que a temida cronologia dos media, que delimita quando um filme faz a passagem da sala para o pequeno écrã, continua a levantar o mesmo problema de sempre, somada às limitações contratuais dos títulos individuais e ao peso dos grandes estúdios no cabo e no video-on-demand português (desde a oferta Nplay da NOS aos grupos de canais da Fox e da Sony).

Resumindo: se a oferta de séries do Netflix é riquíssima – mesmo excluindo tudo o que é HBO, incluindo A Guerra dos Tronos e clássicos como Os Sopranos ou Sete Palmos de Terra – a oferta de filmes é ainda, ao fim de seis meses do serviço, muito limitada. Por enquanto, é na comodidade de encontrar um vasto leque de séries num único serviço que a Netflix ganha aos pontos, o que não quer dizer que os filmes que lá estão sejam de deitar fora. Bem pelo contrário: se formos a usar com paciência a opção de pesquisa ou formos navegando pelos menus, há pequenas descobertas a fazer. Por si só não justificam a mensalidade do serviço, mas para quem já o tiver e tiver interesse, aqui se deixam algumas pistas, esperando que à medida que os contratos forem sendo renovados ou alargados a escolha de cinema vá melhorando.

Duas ressalvas prévias. Primeira, a lista resume-se a longas-metragens, não é exaustiva e consiste de escolhas feitas a partir de um trabalho aturado de pesquisa no serviço. Segunda, as séries e filmes estão disponíveis no Netflix por períodos limitados contratualmente e que variam de título para título; entre a redacção deste texto e a sua publicação é possível que se tenham juntado mais títulos aos indicados, ou que alguns tenham sido retirados do serviço. A agência responsável pelas relações públicas do serviço informou não dispor de uma lista dos títulos presentes no serviço em Portugal, nem um calendário de entrada e saída.

Animação

No que diz respeito ao cinema de animação, que nestas coisas é sempre um ponto forte para quem vê, seguimos para empate. Não há nada da Disney nem da Pixar, nada de Mínimos ou Idade do Gelo. Em contrapartida, o catálogo da Dreamworks está todo no serviço – Shrek, Madagáscar, O Panda do Kung Fu, Monstros vs. Aliens (e respectivas declinações televisivas) e duas das três longas filmadas com os britânicos da Aardman, Wallace e Gromit: A Maldição do Coelhomem e Por Água Abaixo (mas não A Fuga das Galinhas…). Surpresa é ver disponíveis seis filmes do estúdio japonês Ghibli, entre os quais as obras-primas de Hayao Miyazaki Princesa Mononoke e A Viagem de Chihiro e o sublime Conto da Princesa Kaguya de Isao Takahata, a par de um dos filmes menos recordados mas mais divertidos dos estúdios Blue Sky (Fox), Robôs. Em todos os casos, os filmes surgem com a hipótese de original legendado ou versão dobrada.

Cinema clássico

É talvez a maior lacuna do serviço português, e aquela onde as falhas são mais evidentes. John Ford? Orson Welles? Alfred Hitchcock? Jean-Luc Godard? François Truffaut? Jean Renoir? Visconti? Rossellini? Nada, nada, nada. Meia-dúzia de títulos evidentes: Há Lodo no Cais de Elia Kazan, Na Sombra e no Silêncio de Robert Mulligan, Boneca de Luxo de Blake Edwards, Os Dez Mandamentos de Cecil B. de Mille. Há dois Sergio Leone, e não dos menores: Aconteceu no Oeste e Era uma Vez na América. A Nova Hollywood dos anos 1960-1970 não está muito melhor servida - mas encontra-se, surpreendentemente, o filme-charneira que foi Easy Rider; o Scarface de Brian de Palma; os três Padrinhos de Coppola, a obra-prima de Peter Bogdanovich A Última Sessão e o filme maldito de Martin Scorsese, O Rei da Comédia. (O serviço propõe ainda dois outros Scorsese mais tardios, Tudo Bons Rapazes e The Departed, mais o Drácula de Coppola.) Steven Spielberg tem ainda assim uma dezena de títulos, mas o mais antigo é Hook e o grosso vem da sua fase pós-1990 (bom: Apanha-me se Puderes, Relatório Minoritário, A Guerra dos Mundos; menos bom: Terminal de Aeroporto, Munique, Amistad).

Autores modernos

Tal como nos filmes clássicos, a oferta é aqui muito fraca. Não há nem um Woody Allen, nem um David Lynch, nem um Clint Eastwood, nem um Steven Soderbergh. Alguns dos nomes contemporâneos de maior peso têm apenas um único filme: Clube de Combate para David Fincher, Este País Não é Para Velhos para os irmãos Coen, Django Libertado para Quentin Tarantino, Eduardo Mãos de Tesoura para Tim Burton, Sunchaser para Michael Cimino, Homem Morto para Jim Jarmusch, The Fountain para Darren Aronofsky. Michael Mann tem dois – Heat e Colateral – e Oliver Stone três – Assassinos Natos, JFK e Quando o Céu e a Terra Mudaram de Lugar. E Wes Anderson? Só a sua experiência na animação, O Fantástico Senhor Raposo.

Cinema do mundo e cinema independente

Começamos pela surpresa de encontrar um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos, Branco Sai Preto Fica de Adirley Queirós, que nunca chegou a sala entre nós. Não há, contudo, os filmes mais interessantes da actual vaga do país irmão (nada de Kleber Mendonça Filho, Renata Pinheiro ou Marcelo Lordello…). Do cinema europeu, qualquer que seja a nacionalidade, quase não há registo, limitando-se a filmes dos catálogos de distribuidoras como a Midas ou a Alambique, mas contados pelos dedos: Ida de Pawel Pawlikowski, o injustamente ignorado Lore de Cate Shortland ou A Caça de Thomas Vinterberg. Portugueses encontrámos apenas três: É na Terra, Não é na Lua de Gonçalo Tocha, e É o Amor (Obrigação) e Portugal: Um Dia de Cada Vez de João Canijo. A escolha é mais interessante nos indies americanos: Frances Ha de Noah Baumbach, Fruitvale Station de Ryan Coogler, Moon de Duncan Jones, Obediência de Craig Zobel ou Temporário 12 de Destin Daniel Cretton, filmes que mereciam ter tido outra atenção nas salas e podem agora ser descobertos com outra disponibilidade. Em qualquer dos casos, também aqui o serviço fica muito abaixo das possibilidades.

Cinema de género e filmes de culto

Devido à sua origem independente, seria previsível poder encontrar no Netflix alguns clássicos… mas não. De John Carpenter, encontramos apenas o menor Memórias de um Homem Invisível e de Terry Gilliam o lendário Brazil; mas nada de David Cronenberg, Tobe Hooper, Wes Craven ou Joe Dante. De M. Night Shyamalan, só O Acontecimento, de Paul Verhoeven só O Homem Transparente; há one-offs com piada como Stardust de Matthew Vaughn ou Nome de Código: Cloverfield de Drew Goddard, clássicos de culto como Barbarella de Roger Vadim, o aclamado filme australiano de Jennifer Kent O Senhor Babadook e o delirante pastiche retro-futurista canadiano Turbo Kid. Nada de Star Wars nem de Star Trek (à excepção da excelente remake/reboot de J. J. Abrams), nada do Universo Cinemático Marvel ou de Joss Whedon.

Documentários

É, de longe, a categoria onde o Netflix triunfa de longe e mete a concorrência no chinelo. Mesmo inclinando-se mais para o documentário mais mainstream de produção americana, a oferta é rica e inclui, a par de obras que tiveram estreia comercial (À Procura de Sugar Man, Tropicália ou A Noite Cairá), uma série de títulos que não passaram por Portugal ou foram apenas vistos em festivais como o DocLisboa ou o Porto/Post/Doc. Como Iris, de Albert Maysles, sobre a socialite Iris Apfel ou What Happened Miss Simone? de Liz Garbus, sobre a cantora Nina Simone. Como Best of Enemies, sobre os debates televisivos entre o escritor Gore Vidal e o comentador político William Buckley nas eleições presidenciais americanas de 1968 ou Cartel Land, de Matthew Heineman, sobre a “guerra contra a droga” nas províncias mexicanas. Como The Internet's Own Boy, sobre o caso de Aaron Swartz, o hacker de génio que se suicidou na sequência de uma luta legal contra o governo americano, ou Going Clear, a reportagem-denúncia da cientologia por Alex Gibney (que tem ainda A Mentira de Armstrong e Sinatra: All or Nothing at All). É, para já, a grande mais-valia do serviço, a par das séries.

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