Da simplicidade ameaçadora de Manuel Amado à turbulência inquietante de Paula Rego

Uma complexa construção cenográfica de cada imagem, a utilização de modelos reais ou fabricados - Paula Rego. Eliminar até ao limite do possível a presença de personagens - Manuel Amado. Na Casa das Estórias.

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A preferência de Paula Rego pelas figuras fortes de mulheres do povo é conhecida, e elas aqui voltam a surgir
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A preferência de Paula Rego pelas figuras fortes de mulheres do povo é conhecida, e elas aqui voltam a surgir
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A preferência de Paula Rego pelas figuras fortes de mulheres do povo é conhecida, e elas aqui voltam a surgir
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Paula Rego, Breakfast, 2015
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No caso de Manuel Amado, a protagonista é a luz
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No caso de Manuel Amado, a protagonista é a luz
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Manuel Amado, Casa de banho com cortina amarela, 1992

Desde Maio, a Casa das Histórias Paula Rego apresenta novas obras da artista a quem este museu é dedicaco. Trata-se de três séries, para além de outros trabalhos avulsos que, como é habitual na obra desta pintora, articulam uma narrativa pré-existente, escrita ou não, com a imagem plástica. Como em finais da década de 90 aconteceu com O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, Paula Rego regressou aqui ao grande escritor do século XIX para se debruçar sobre duas das suas obras maiores: O Primo Basílio e A Relíquia.

Old meets new foi o nome dado a esta exposição. Não nos é explicado o sentido do título, mas não nos espantaria que a sua escolha estivesse relacionada com os temas salientados pela pintora, que são afinal de contas os mesmos desde que Eça se debruçou sobre eles há mais de cem anos. Além destas séries, Catarina Alfaro, a curadora, salienta também outras peças inseridas na montagem e que não pertencem ao conjunto de obras sobre os dois livros de Eça. São elas um tríptico onde a artista conjuga auto-representação com a presença da máscara, uma nova figura de anjo que se declina a partir de uma outra, sua semelhante, pertencente à série de “O crime do Padre Amaro”, e finalmente um terceiro núcleo de obras, provavelmente o mais surpreendente, sobre “O último rei de Portugal”. Neste, Paula Rego aborda episódios da vida de D. Manuel II, desconstruindo-os através da escolha de motivos iconográficos específicos que permitem desmontar a narrativa histórica pré-estabelecida. Numa das obras mais importantes desta série, por exemplo, Remando da Ericeira, a artista mostra a partida do rei para o exílio. Mas coloca-o num bote de borracha salva-vidas, veste-o de pescador com as calças arregaçadas, fá-lo levar ao colo a mãe rainha, e encena, como fundo, as falésias da vila com o povo a observar. Não faltam uma boneca-varina segurando a bandeira monárquica nem a silhueta de um coelho para dar ao conjunto um ar de opereta teatral que destrói por completo a possibilidade de leitura dramática que a cena poderia hipoteticamente suscitar.

Este é o mote para a leitura de todas as obras que vemos nesta exposição. Em todas elas, Paula Rego apropria-se da função clássica da pintura – mas na realidade nada do que aqui vemos é estritamente pintura, já que quase todas as obras são feitas em técnicas diversas sobre papel -, que desde o Renascimento e até ao Modernismo se deu a si própria como objectivo contar uma estória, e declara alto e forte duas coisas: primeiro, que a estória que a pintura conta é a própria pintora que a imagina. E segundo, que a história que querem fazer a pintura contar, é uma história, que, em transparência, exibe todas as marcas da cultura que a gera. No caso de Eça de Queirós, ela traduz assim todos os vícios e defeitos da sociedade provinciana, conservadora e patriarcal como a portuguesa era… e talvez ainda seja.

A propósito de O Primo Basílio, Eça escreveu em tempos, em carta reproduzida no catálogo, que “(…) eu ataco a família lisboeta, produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e, mais tarde ou mais cedo, centro de bambochata.” Mais à frente, sobre a personagem Luísa, afirma tratar-se de uma “senhora sentimental, mal-educada, nem espiritual (porque cristianismo, já o não tem; sanção moral da justiça, não sabe o que isso é), arrasada de romance, lírica, sobrexcitada no temperamento pela ociosidade”, entre outros mimos do género. Numa entrevista que Paula Rego deu à curadora para o catálogo, desta vez sobre “A Relíquia”, afirmou, por seu lado: “ Li o livro. Aluguei roupas do período correspondente e vestes de padres. Não segui instruções mas tinha alguma ideia dos interiores. (…) É um assunto sério: existem coisas no livro de que normalmente não se fala.” Ou seja, para Paula Rego, interessa-lhe, mais do que o discurso académico, crítico, sociológico ou mesmo político que é habitual nos comentários sobre estes dois livros, a interpretação pessoal que faz dos mesmos.

E esta interpretação passa sempre por uma complexa construção cenográfica de cada imagem, pela utilização de modelos reais ou fabricados, e por uma espécie de desclassificação não apenas das normas instituídas pela história da arte – as que se prendem com o cânone de beleza feminina, por exemplo, ou com os atributos viris das personagens masculinas, mas também tudo o que se refere a escala, técnica, estilo, esquema compositivo. A sua preferência pelas figuras fortes de mulheres do povo é conhecida, e elas aqui voltam a surgir. As figuras masculinas, quer se trate de um Cristo de uma Pietà, de uma personagem de A Relíquia ou do próprio rei de Portugal, são pouco mais que fantoches no sentido literal da palavra. Por último, as heroínas de Eça exibem-se como o mestre do realismo literário em Portugal as quis representar: tolas, tontas, vítimas e nunca agentes da turbulência inquietante da História. Toda a exposição, na vivacidade imaginativa do trabalho de Paula Rego, conflui o nosso olhar para uma instalação que mais não é do que um conjunto de acessórios vindos directamente do atelier da artista (e outras imagens do próprio atelier podem ser vistas nas páginas do catálogo). Nela, uma boneca loira, vestida à moda do século XIX, encosta-se, histérica, em pé em cima de uma cama, à parede burguesa forrada a papel colorido.

Os cenários vazios

Conjuntamente com Old meets new, decorre numa das salas centrais do museu uma individual de Manuel Amado comissarida pela própria Paula Rego e por Catarina Alfaro. Trata-se de uma selecção de pinturas deste artista datadas entre 1975 e 2008. Sobre elas, Paula Rego, que teve a última palavra sobre o conjunto que aqui é agora apresentado, disse que possuíam todas “uma simplicidade ameaçadora”. E há nelas de facto um lado teatral, que já se destacava noutras exposições deste artista; para apenas citar uma, mencionaremos a que realizou em 2007, na Galeria de Pintura do Rei D. Luís, que tinha justamente por tema o teatro.

No conjunto que está agora na Casa das Histórias notamos a preocupação de eliminar até ao limite do possível a presença de personagens. Quando elas surgem, estão adormecidas, deitadas em camas, apenas se vislumbrando a cabeça, o cabelo, um braço, o relevo dos pés debaixo de uma coberta. Nesses quartos, a protagonista principal é sempre a luz, e mesmo num caso há como que um tríptico onde o pintor representou o mesmo ponto de vista em diferentes horas do dia.

Percebe-se por isso que é esta luz que determina a reacção do espectador perante o que vê. E, nos muitos espaços de transição presentes – quartos, é certo, mas também corredores, escadas de serviço, recantos, uma cozinha vazia com uma porta de frigorífico aberta – esta ausência é apenas o resultado de um instante. Alguém partiu, alguém está a chegar. Esse alguém somos provavelmente nós, como nas Meninas de Velásquez, onde os reis para quem a pintura é feita não estão exactamente ali, apenas tendo deixado o seu reflexo. Esta associação com Velásquez não é inocente, como não o será para Manuel Amado, ele que é possuidor de uma cultura notável. É que, tal como na obra-prima do mestre espanhol, não existe aqui nunca ponto de fuga: ele corta-se pela presença de uma janela, um móvel, uma parede de fundo.

Cenário, portanto. Espaço em caixa, para o qual o freudiano conceito de unheimlich – a estranheza inquietante bem próxima do comentário de Paula Rego – não é de todo desadequado. Unheimlich que nasce sempre da percepção de um déjà vu que aqui faz todo o sentido. É que o Verão de que o título fala, apropriado de um verso de Rilke, e as casas de férias em particular, não são mais do que o lugar onde se volta sempre e sempre para tentar viver o que já se viveu em tempos.

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