Ana Cristina Cesar, uma morta vivíssima em Paraty

Mais de 30 anos depois da sua morte, a obra da "moça eterna" vive nas novas gerações de poetas. A escritora brasileira é a homenageada da FLIP e ganhou uma fotobiografia.

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Ana Cristina César em 1982, um ano antes da sua morte ACERVO ANA CRISTINA CESAR/INSTITUTO MOREIRA SALLES
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O número de 25 de Setembro de 1961 do jornal O mundo, criado por Ana Cristina Cesar ACERVO ANA CRISTINA CESAR/INSTITUTO MOREIRA SALLES
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A escritora em Londres, na década de 1970 ACERVO ANA CRISTINA CESAR/INSTITUTO MOREIRA SALLES
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O manuscrito de Luvas de Pelica (1980) ACERVO ANA CRISTINA CESAR/INSTITUTO MOREIRA SALLES
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Página de caderno de desenhos (Portsmouth, 1980) ACERVO ANA CRISTINA CESAR/INSTITUTO MOREIRA SALLES

Ana Cristina Cesar (1952–1983) é a autora homenageada da 14.ª Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) que começa nesta quarta-feira e termina domingo. Ricardo Araújo Pereira, o convidado português, participa sexta-feira na sessão Mixórdia de Temáticas com a escritora e cronista brasileira Tati Bernardi, numa conversa moderada pelo humorista Gregorio Duvivier.

Quem vai à FLIP sabe que “as mesas de poesia fazem um grande sucesso”, explica ao PÚBLICO Paulo Werneck, o curador pelo terceiro ano consecutivo daquele que é o mais importante evento literário brasileiro. Falou-se muito de Matilde Campilho no ano passado, mas em edições anteriores houve Alice Sant’Anna, Bruna Beber e  Ana Martins Marques – “três poetas sensacionais da geração que está se firmando na poesia brasileira”. “Elas sempre roubam a cena.”

Por isso, esta escolha foi também “uma questão de observação”. Ana Cristina “está viva na obra dessas poetas, está sendo lida, tem uma enorme importância actual”, acrescenta Paulo Werneck. “Os seus companheiros de geração, que na época eram underground, como Armando Freitas Filho, hoje estão consagrados”.

A sessão de abertura da festa nesta quarta-feira terá como convidado principal o poeta brasileiro Armando Freitas Filho, que foi amigo de Ana Cristina Cesar e é o responsável pela edição da sua obra. Ao seu lado estará o cineasta Walter Carvalho, autor de um documentário sobre a vida e a obra deste poeta, Manter a Linha da Cordilheira Sem o Desmaio da Planície. O filme será exibido a seguir à conversa moderada por Eucanaã Ferraz, poeta, consultor de literatura do Instituto Moreira Salles (IMS) e organizador de Inconfissões – Fotobiografia de Ana Cristina Cesar, que terá lançamento em Paraty. Segue-se um sarau com vários poetas da nova poesia marginal, herdeira dos poetas marginais dos anos 1970/80.

Moça eterna

A escolha de Ana Cristina Cesar como autora homenageada representa “uma renovação da FLIP importantíssima”, explica Armando Freitas Filho ao telefone, antes de partir para Paraty. Isto porque uma escritora que morreu com 31 anos é colocada ao lado de escritores muito mais velhos, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos ou Oswald de Andrade, homenageados em edições passadas.

“Deu um tom mais alegre” à festa literária, e “mais intenso” também, porque apesar de Ana Cristina ter morrido há 33 anos, a escritora mantém, década após década, “uma inserção, uma importância e uma necessidade” cada vez maiores. “Ela é uma morta viva, vivíssima!”, diz o autor de Rol, que em Portugal tem publicada Uma Antologia (2006) nas edições Quasi.

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Foi aliás nesta editora, e no mesmo ano, que saiu em Portugal uma antologia da obra de Ana Cristina Cesar, Um Beijo que Tivesse um Blue, organizada pela professora universitária Joana Matos Frias. Valter Hugo Mãe, que foi editor das Quasi juntamente com Jorge Reis-Sá, lembra que quando os dois criaram a colecção para autores brasileiros ponderaram um conjunto de autores, e que o nome da Ana Cristina Cesar aparecia em todas as conversas. “Subitamente estávamos a conversar com o Armando Freitas Filho, convidando-o para editar connosco, e ele colocava a obra da Ana Cristina Cesar como obrigatória, quase nos motivando a dar prioridade à edição dela antes da edição dele”, conta o escritor, que está a terminar o seu próximo romance e é um dos portugueses com mais sucesso na história da FLIP.

Valter lembra-se também de visitar o pai da poeta na sua casa no Rio de Janeiro, e de este ter ficado comovido ao ser-lhe formalizado o convite dos editores portugueses. “Havia em quase todos os poetas brasileiros renomados uma quase frustrada ofensa por nunca haverem sido publicados em Portugal. Isso foi assim com Manoel de Barros, Ferreira Gullar ou Armando Freitas Filho. O pai de Ana Cristina, junto a uma janela por onde se viam os edifícios vizinhos, espreitou e disse-me que aquele era ‘um dia de luz’. Havia uma triste alegria em imaginar que a obra da filha chegaria a Portugal. Foi muito especial”, lembra o escritor, que já não estava na editora em 2006, quando o livro foi efectivamente publicado por Jorge Reis-Sá.

Para Valter não há dúvida de que a obra de Ana Cristina deixa um carinho muito peculiar nos seus leitores. “Inevitavelmente impressionados com a juventude com que nos deixou, creio que encontramos nos seus poemas uma maturidade surpreendente e um certo olhar astuto sobre o mundo”, diz, enfatizando o quanto gosta dela. “Há uma tragédia do tipo estrela rock que a envolve, mas nada nessa dimensão pop que se lhe colou a destitui da beleza ou da inteligência."

Por sua vez, Armando Freitas Filho lembra que se trata de uma poesia que “abriu muitas frentes para muita gente” e que esta homenagem na FLIP é o reconhecimento da arte de Ana Cristina Cesar, uma arte que teve escassíssimos quatro anos de vida publicada: o primeiro livro é de 1979, o último de 1983. “Fez cinco livros magros, de poucas páginas, e com eles teve essa repercussão, logo no começo. O seu primeiro livro teve logo uma segunda edição, o que para poeta é uma verdadeira façanha”, explica Freitas Filho. “Isso deu uma alegria à festa literária, esta é a FLIP da moça eterna, compreende?”.

Criança autora

No documentário Manter a Linha da Cordilheira Sem o Desmaio da Planície é lida a carta de despedida que Ana Cristina César escreveu para Armando Freitas Filho antes de se suicidar no Rio de Janeiro em 1983, na sequência de uma longa depressão, poucos meses depois do lançamento do seu livro de poemas A Teus Pés na importante editora Brasiliense. “Fiz quatro livros póstumos [Inéditos e DispersosEscritos de Inglaterra, dedicado aos seus ensaios sobre tradução; Escritos no Rio, reunindo textos publicados em jornais; e, em conjunto com Heloísa Buarque de Hollanda, Correspondência Incompleta, que acaba de ser reeditado em ebook], porque por vontade expressa dela à mãe as coisas e [os] papéis dela ficaram aqui em casa”, conta o curador da obra, que em 2003 reuniu toda a sua poesia em Poética (Companhia das Letras) e que diz não estar a pensar publicar mais inéditos da escritora. O que existe agora no acervo de Ana Cristina Cesar à guarda do IMS é material para os investigadores, acrescenta. 

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Ana Cristina Cesar aos dois anos, em 1954 WALDO CESAR/ACERVO ANA CRISTINA CESAR/INSTITUTO MOREIRA SALLES

A poesia de Ana Cristina César, explica ainda, baralha três matrizes: a conversa coloquial, a carta e o diário. “Dali sai um texto muito instigante porque parece que ela está falando directamente com cada leitor.” Às vezes, o leitor esquece-se até de que está a ler um livro. "Parece que se está a ler uma confissão particular, secreta; ou melhor, uma inconfissão. Tudo elaborado de uma maneira muito fina. É um texto baseado em coisas fúteis e ao mesmo tempo é exigente. Não é um poema que você lê uma vez e passa para outra folha. Você sempre tem vontade, pelo menos, de ler uma outra vez para ver se compreendeu bem aquilo. E não é nada pernóstico, pelo contrário, é até uma escrita simples que põe você interlocutor.”

O título da primeira fotobiografia dedicada a Ana Cristina Cesar é aliás Inconfissões. É editada pelo IMS, que na sua casa em Paraty irá ter uma exposição dedicada à homenageada.

Eucanaã Ferraz, que organizou esta fotobiografia, onde também colocou poemas e textos em manuscritos e dactiloscritos, não conheceu pessoalmente Ana Cristina Cesar. Para ele, como escreve na introdução, ela era “apenas uma fotografia na parede”, tal como no verso de Drummond, mas tornou-se muito real à medida que o trabalho avançava.

Numa conversa telefónica, o poeta explica ao PÚBLICO que ao organizar este livro experimentou aquilo que todos sabemos teoricamente: qualquer biografia é uma narrativa que tem uma dimensão ficcional. À medida que ia recolhendo as imagens e os muitíssimos manuscritos, e que ia pedindo depoimentos, Eucanaã ia escolhendo. “Essa Ana é uma Ana minha. É uma ficção, estou construindo uma fala que implica escolhas, abandonos, idiossincrasias. É uma fotobiografia feita por mim, pelas minhas escolhas dentro do material a que tive acesso, por isso muito aleatória.”

Eucanaã entendeu também como é absolutamente verdade que um biografo se envolve com a personagem que vai criando. “Ela vai ficando real. Fui ficando encantado com Ana Cristina e fui-me envolvendo muito mais do que estava até então. Eu só conhecia a poesia dela e os textos sobre poesia, nunca tinha lido as cartas.”

E quando as leu, ficou encantado. Ligava para Armando Filho e para Heloísa Buarque e dizia-lhes: “Mas que moça adorável!”. Utilizava a palavra “moça” porque ali não estava a poeta Ana Cristina mas “uma moça com problemas muito banais": dinheiro, um director da escola que ela achava reaccionário, escolhas de que se arrependia... “Tudo me pareceu de uma banalidade tão grande, e foi essa banalidade que me encantou porque ela se tornou muito real”, diz Eucanaã, lembrando que Ana Cristina já era poeta na infância. “Ela tem produção aos dez, 12 anos, e são poemas interessantes. Antes de escrever, ditava poemas para a mãe. E mais tarde tinha uma editora a que chamou Problemas Universais para publicar os próprios poemas. O que passa pela cabeça dessa menina? Ela tinha ambição de carreira literária aos dez anos. Não é uma autora criança. É uma criança autora. É uma outra dimensão.”

Por trás dos óculos escuros

Nas variadíssimas imagens desta fotobiografia, Ana Cristina Cesar parece “uma menina de hoje”, reforça Eucanaã. “Aquelas roupas, aquele cabelo, aqueles óculos, aquela postura, aquela pose – e sobretudo aqueles poemas. Que são muito contemporâneos porque a poesia contemporânea fez aqueles poemas serem contemporâneos. Muitos poetas hoje escrevem influenciados pela Ana Cristina. Ela é o poeta mais influente na poesia contemporânea no Brasil, não tenho dúvida”, afirma o investigador. “À época, nos anos 70, ela não era tão contemporânea. Se você olhar a produção dos seus companheiros de geração, ela parece um pouquinho deslocada para trás. Os outros tinham versos muito curtinhos, eram instantâneos da realidade. Enquanto a Ana tendia a uma elaboração maior, a uma atenção maior à tradição poética, a uma conversa com João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Drummond, e com poetas estrangeiros como T.S. Eliot ou Sylvia Plath. Ela tinha uma atenção grande a isso, era muito intelectualizada, o que de certo modo a aproximava do poeta Cacaso, da sua geração, mas a distanciava, por exemplo, de poetas como Charles ou Chacal, porque aqui interessava muito mais uma atitude contracultural.”

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A escritora em Valparaíso, no Chile, meses antes da sua morte WALDO CESAR/ANA CRISTINA CESAR/INSTITUTO MOREIRA SALLES

A poesia de Ana Cristina é também fragmentária, mas cada fragmento tem uma densidade biográfica, de retrato. “Não temos muito a noção de como esses retratos se ligam uns aos outros, o que dá à sua poesia uma sensação muitas vezes de hermetismo, de uma conversa um pouco enigmática. Por isso o leitor tem muita dificuldade em entrar. A poesia dela é muito fechada, tudo parece que flui como um retrato do dia-a-dia, do quotidiano, não acontece nada de extraordinário. O vocabulário, os arranjos, tudo parece muito coloquial mas tem muitos cortes; as coisas não se emendam, há buracos, há muitos vazios. A poesia dela é muito estranha. Parece que você está assistindo a uma coisa a que não tem acesso. É como se fosse uma private joke."

Nas fotografias, em que Ana Cristina Cesar aparece muitas vezes de óculos escuros, de certo modo isso também se nota. “Essa impressão de que ela está lhe dando acesso só a uma parte da coisa. Tem um certo desejo de enigma ali, uma certa recusa de se dar inteiramente. Fazer uma fotobiografia de alguém que deixou produzir tantas imagens de si mesma e ao mesmo tempo parece que nunca dá acesso ao personagem inteiro é uma coisa muito perturbadora e muito sedutora”, conclui Eucanaã Ferraz. Durante os próximos dias, o enigma Ana Cristina Cesar será desvendado em Paraty.

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