“Rupturas na substituição dos governos impedem que o país ganhe”

José Maria Rego ocupou um lugar estratégico na ligação entre os gabinetes políticos e governamentais e o corpo de funcionários da administração pública

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Daniel Rocha

José Maria Rego foi secretário-geral da Presidência do Conselho de Ministros (PCM) durante catorze anos. Foi convidado para o cargo pelo secretário de Estado da PCM, Domingos Jerónimo, no Governo chefiado por Durão Barroso que fez questão de ir buscar alguém apartidário para o cargo. Continuou até em 2016, quando completou 70 anos, e trabalhou com seis governos e cinco primeiros-ministros: Durão, Santana Lopes, José Sócrates, Passos Coelho e António Costa. Tendo feito carreira que vai dos CTT à direcção do programa REDE para micro empresas, José Maria Rego ocupou um lugar estratégico na ligação entre os gabinetes políticos e governamentais e o corpo de funcionários da administração pública. Uma posição que lhe dá um conhecimento concreto sobre quais os nós górdios que há que saber cortar na governação em Portugal para que se ganhe em desenvolvimento e eficácia governativa.

Independentemente do estilo de cada primeiro-ministro, detectou alguma continuidade no cargo ou é verdadeira a imagem de que quem entra faz tudo de novo de acordo com a sua vontade e a do seu partido?
É muito verdade que nas mudanças de Governo se verifica um recomeço. Conta, para isso, o facto de a administração pública estar afastada dos assuntos políticos e não conseguir oferecer continuidade às políticas de maior prazo. Portanto, um governo à saída leva o saber, leva o que construiu. E o que chega traz o conhecimento dos partidos que o suportam e arranca com essa matriz. A administração não está em posição de oferecer uma avaliação e o conhecimento do Governo que saiu de forma a poder ser reorientada pelo governo que chega como é a atribuição de lei.

Isso confirma, ao nível das competências, a imagem de uma administração que tem sido muito desvalorizada. Os governantes recorrem a gabinetes e consultórios jurídicos privados em substituição dos centros de competência do Estado. É verdade?
É. Nos anos 1970, quando foi a instalação da democracia em Portugal, houve uma decisão relativamente ao processo de preparação da legislação e de funcionamento do Conselho de Ministros. Não havia experiência de governos com base em partidos políticos e foi preciso organizar não só o executivo, mas a sua relação com a administração. Havia duas soluções em cima da mesa: reforçar a administração que estava fragilizada ou então atribuir competências a órgãos políticos.

E a decisão foi?
Atribuir a órgãos políticos. Houve três consequências dessa decisão. A primeira foi reuniões de secretários de Estado preparatórias dos Conselhos de Ministros. A segunda foi organizar o Conselho de Ministros em três partes: assuntos que passaram em secretários de Estado, assuntos que sofrem divergências nessas reuniões e uma terceira parte à disposição do primeiro-ministro. A terceira consequência foi a criação do secretário de Estado da PCM. A partir de 1979, o processo de elaboração da legislação, de organização dos Conselhos de Ministros de apoio ao primeiro-ministro tem sido assumido pelo secretário de Estado da PCM, que foi recuperado com estas funções.

Ele é o vértice da pirâmide da administração?
Eles são membros do governo e o processo legislativo em Portugal é completamente assegurado por políticos. E isso cria um fosso de governo para governo que não pode ser preenchido pela administração, porque não tem sequer conhecimento do que se passou. Estas rupturas na substituição dos governos impedem que o país ganhe. Impede a continuidade e as políticas de maior prazo são prejudicadas.

O recurso, em outsourcing, a gabinetes jurídicos no processo legislativo não cria uma grande dependência do Estado em relação a privados?
Pode criar ou não. Depende de vários factores. O recurso a especialistas do exterior é útil em muitos casos e a administração pode não ter conhecimentos suficientes para se pronunciar cabalmente sobre todos os assuntos. Agora, passando ao exterior a responsabilidade de aconselhar e preparar documentos para apoiar o Governo, sem haver internamente quem saiba encomendar e receber e quem consiga ficar com esse conhecimento trabalhado, faz com que o núcleo duro desses conhecimentos resida no exterior. E isso cria sempre uma dependência relativamente a quem detém esses poderes que são os privados, que podem usar essa dependência para fazerem passar influências.

Esse modelo é completado com os gabinetes dos ministros e dos secretários de Estado formados por pessoas de confiança política, mesmo que sejam destacados da administração. E que ocupam o espaço que deveria ser dos centros de competência da administração?
O que acaba de descrever alimenta uma partidarização e falta de independência e de neutralidade da administração. As pessoas nomeadas para os gabinetes por serem de confiança política aparecem individualmente e desarticuladas da orgânica e da hierarquia da administração. E funcionam numa bolha pela relação política ou partidária que têm com os membros do governo. Nem se pode dizer que administração está envolvida no processo porque estão envolvidas pessoas individuais.

É um pouco o inverso do que se vê nas séries “Yes, Minister” e “Yes, Prime Minister” que caricaturam precisamente o modelo da administração que perdura quando os governos mudam.
Essa série evidencia uma administração forte, com os seus interesses e o seu peso, e ministros tentando fazer passar as suas políticas. Cá em Portugal a série chamar-se-ia “Yes, boy”, porque há membros do governo que desvalorizam tanto a administração que põem os membros dos seus gabinetes, os adjuntos, os especialistas, a despacharem com os directores-gerais.

Qual é a diferença entre Portugal e os outros países?
Não há modelos prontos. Cada país tem de desenvolver o seu. Mas hoje em dia, por comparação com os modelos utilizados nos países da OCDE, há um conceito de Centro de Governo que tem vindo a ser estruturado, em Portugal também. Precisamente para responder à necessidade de fazer uma coordenação política transversal a partir do Centro de Governo. Esse conceito considera que é o primeiro-ministro e o Centro de Governo que estão no palco e que as melhores políticas devem ser conduzidas a partir dele. Este modelo é distinto da nossa prática em dois aspectos fundamentais.

Que são?
O primeiro é que Portugal, como a Áustria, tem uma tradição de uma forte autonomia de cada ministro. Cada ministro quer saber em quem é que manda e quais são as entidades da sua tutela. Essa grande autonomia hoje é posta em causa pela coordenação política transversal às áreas governativas e aos ministros. Porque as áreas governativas estão organizadas em linha – a saúde, a educação, a justiça –, mas grande parte dos problemas são transversais a estas áreas. É o problema das alterações climáticas, dos refugiados, da defesa, do emprego, do ordenamento do território e da modernização administrativa. Com este conceito de Centro de Governo, a forte autonomia dos ministros tem de ser ajustada.

E a outra diferença?
É que o Centro de Governo é uma equipa mista próxima do primeiro-ministro muito flexível, muito adaptável. E na recolha empírica de dados dos países da OCDE tem-se verificado que são equipas surpreendentemente pequenas mas com um misto de políticos e da administração. E isso cá também não existe.

E quanto aos centros de competência?
A administração tem de ser organizada por centros de competências. Ela não está pronta a poder responder aos desafios de um Centro de Governo, porque está partidarizada e porque não está organizada por centros de competências que permitam responder aos ministros nas duas vertentes. A de linha ou por temas: saúde, educação, justiça. E transversalmente nas políticas que cruzam várias áreas. Para isso, é preciso redesenhar a administração. Os outros países estão a fazer isso. Não são reformas de curto prazo, não se fazem num impulso, muitas vezes não se conseguem completar no prazo de uma legislatura. Já tivemos o PRACE, o PREMAC. É preciso lançar um processo que permita ao país rivalizar em eficiência com os outros países.

Os concursos públicos e a CRESAP vieram introduzir melhorias no sistema ou a cartelização do Estado continua a ser dominante?
Melhorou. A CRESAP afasta as pessoas que se candidatam ao lugar tendo como único atributo serem da confiança do membro do Governo, os chamados páraquedistas. Quanto à despartidarização, a CRESAP não tem instrumentos para afastar pessoas que se candidatem e que estejam na militância activa de um partido. Por lei, a CRESAP não as pode afastar e esse é um problema que, nós portugueses, temos de resolver. Porque um director-geral militante activo de um partido inicia funções com um governo e quando chega o governo seguinte vai ter de lidar com um dirigente de topo que é militante do partido que saiu.

E a tendência é para o demitir...
Acaba por ser prática corrente em Portugal o governo recém-chegado ter dificuldade em lidar com militantes activos nos lugares de topo da administração. Isso partidariza a administração e dificulta as relações de confiança com a administração e impede-a de ter uma atitude neutral, que seja de empenho e de colaboração, mas que se abstenha de se pronunciar sobre as orientações políticas. Estive catorze anos no cargo de secretário-geral da PCM, fui confirmado seis vezes. Isto foi possível porque os primeiros-ministros o entenderam. Mas é evidente que eu assumi uma postura de total empenho com os governos, mas de abstenção em relação às orientações de política.

Quais os custos em termos de desenvolvimento do país e de eficácia do Estado?
Tem muitíssimos custos. Tem os de que já falámos das rupturas de governos. Um governo quando entra deve reorientar. É por isso que são feitas eleições e é dada posse a novos executivos, para reorientarem as políticas anteriores e lançarem novas. Sem números, a ideia que existe é que os governos tendem a pegar naquilo que ficou da última vez que os seus partidos estiveram no poder. Isto faz como que, em vez de o país ganhar com todos os governos, os governos entrem numa disputa. E a democracia é feita para ganharmos com todos os governos. Representei Portugal no grupo especializado dos Centros de Governo da OCDE e percebemos aí que os modelos estão a evoluir muito rapidamente. É urgente nós modificarmos o nosso modelo de funcionamento.

A percepção pública do desfasamento entre governação política e administração é uma questão chave na relação de confiança dos cidadãos para com as instituições, não é?
É, porque os países do sul da Europa têm níveis de confiança nos seus Governos muitíssimo abaixo dos 50%, tradicionalmente, e os do norte têm indicadores acima dos 50%. Com a crise, todos os países baixaram os seus níveis de confiança. O afastamento da administração em relação ao governo acaba por isolá-lo. E governar com índices de confiança tão baixos é uma tortura. Não são as melhores condições para os governos desenvolverem políticas que possam ser reconhecidas e que possam fazer o país dar os saltos de que necessita.

Como vê o modelo usado para o Simplex 16, em que a ministra e a secretária de Estado andaram pelo país a ouvir o que os funcionários e as populações tinham para dizer?
No tempo do Governo José Sócrates, o Simplex foi considerado uma boa prática internacional que foi promovida pela OCDE. A forma como o actual Governo conduziu o processo é uma boa prática nacional. Para definir os problemas que a modernização administrativa tinha de atacar, foi-se ouvir os interessados. Aliás, a chanceler, Angela Merkel, lançou há uns anos o chamado “Diálogo sobre o Futuro” na Alemanha, onde ela tem uma unidade pequena especializada em comunicação social que faz em todo o país debates orientados de forma a poder recolher informação e poder saber para onde é que os alemães querem ir e qual o futuro que desejam. Esse diálogo exige muito dos membros do governo e dos gabinetes. Nós tínhamos uma administração em que os gabinetes de estudo...

Há muitos anos que não há.
Ainda temos alguns nas Finanças e na Economia e que trabalham muitíssimo bem. A administração tem competências e equipas fortíssimas, o que estão é desarticuladas.

Como vê a decisão do Governo de a recuperação do centros de competência jurídica na PCM?
É positivo, mas não é suficiente. Eu concordo com tudo o que seja criar centros de competência na administração que a habilitem a emparceirar de uma forma subordinada, com o governo na preparação de políticas e de legislação, na avaliação de impacto. O caminho é por ai.

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