A PIDE/DGS e a consolidação democrática

Não nos cabe a nós, enquanto investigadores em Ciências Sociais, voltar a julgar a PIDE.

Num artigo de opinião no PÚBLICO de 11/6/2016, o historiador Manuel Loff contesta a ideia de que a consolidação democrática tenha trazido políticas de reconciliação com o passado autoritário em Portugal. O texto de Manuel Loff parte dos resultados do Inquérito sobre a Memória da Oposição e Resistência ao Estado Novo que conduzi recentemente no Instituto de Ciências Sociais (ICS), mas comenta sobretudo os resultados da investigação que desenvolvi no âmbito da minha tese de mestrado em Política Comparada em 2006-07 e que foi parcialmente publicada num livro editado pela Imprensa de Ciências Sociais. Por se tratar de um tema de indiscutível relevância académica e cívica, sintetizarei aqui os resultados daquela investigação e, em seguida, tecerei algumas considerações sobre este assunto.

Vamos primeiro aos factos.

1. Em 1974, o ajuste de contas com o passado autoritário por via legal era mais difícil do que é hoje. Só muito mais tarde é que os “crimes contra a humanidade” foram internacionalmente reconhecidos e a questão da incriminação passou a ser mais fácil de superar, mas, convém lembrá-lo, estávamos em 1974 e o principal precedente eram os julgamentos de Nuremberga, que criaram jurisprudência na área dos crimes de ‘genocídio’ e ‘crimes de guerra’. É certo que outros países, como a França, a Itália, a Bélgica ou a Checoslováquia, ajustaram contas domesticamente com o seu passado fascista e colaboracionista, mas os detalhes desses casos eram certamente pouco conhecidos no Portugal de 1974. Este facto contribuiu para que, na sequência do 25 de Abril de 1974, após terem sido detidos, vários agentes e informadores da PIDE/DGS tivessem permanecido mais de um ano em prisão preventiva sem que houvesse uma lei incriminatória. Esta constatação de facto, objectiva, não envolve qualquer juízo quanto ao sentido do que ocorreu: limito-me a afirmar um dado histórico inquestionável.

2. A influência da sociedade civil no ajuste de contas com o passado é transversal aos processos de justiça transicional, mas o seu impacto depende da janela de oportunidades criada pela transição democrática. Por exemplo, na Grécia, onde a ditadura dos coronéis colapsou, os julgamentos foram desencadeados pela sociedade civil, que recorreu directamente ao sistema judicial, resultando em sentenças que incluíram a prisão perpétua. No polo oposto, as manifestações que marcaram as transições negociadas em Espanha e no Brasil exigiram a amnistia dos presos políticos da ditadura sem anteverem que isso levaria à aprovação de leis que, paradoxalmente, impedem ainda hoje que os responsáveis pelos crimes sejam julgados. Em Portugal, onde houve uma transição por ruptura, os julgamentos são parcialmente uma consequência não prevista do golpe, pois, segundo os próprios militares do MFA, as detenções feitas a seguir ao 25 de Abril foram no essencial uma medida ‘ad-hoc’ tida como necessária para travar os movimentos que na rua pediam a ‘morte aos pides’. Como se percebe, é inegável que a vontade política para julgar e punir a principal instituição repressiva não era um denominador comum no seio do MFA e que a solução encontrada foi uma forma de responder a pressões societais.

3. O enquadramento legal que em grande medida explica o desfecho dos julgamentos deve ser entendido no seu contexto histórico e no âmbito do tipo de democratização desencadeada pelo 25 de Abril. É que a lei nº 8/75 era uma lei com efeitos retroactivos que definia a PIDE/DGS como uma ‘organização de terrorismo político e social’ e no essencial condenava os seus agentes e colaboradores pela pertença a essa mesma organização, mesmo que determinasse o apuramento de responsabilidades por atividades criminosas. À época, e por se tratar de uma fase de transição, o Conselho da Revolução era quem detinha o poder legislativo, e foi quem legislou nesta matéria. O julgamento da PIDE/DGS realizou-se em tribunais militares onde foi aplicado o código de justiça militar. A elite política limitou-se a incluir na Constituição portuguesa as leis previamente aprovadas pelo Conselho da Revolução e desde aí o parlamento português não discutiu outras formas de punir os agentes e colaboradores da PIDE/DGS. Demonstro este facto num artigo que será brevemente publicado na revista Análise Social.

A análise dos factos que apresento no meu estudo não é normativa ou valorativa. Trata-se de uma análise comparada dos processos de democratização e argumenta que em Portugal a consolidação democrática – ou seja, o fim do período de incerteza e a estabilização das instituições – trouxe o Estado de Direito democrático juntamente com a adopção de medidas de reconciliação com o passado, de resto comuns a outros processos de justiça transicional.

Os estudos académicos nesta área definem a reconciliação como o conjunto de acções que pretendem construir e reconstruir relações sociais não marcadas pelos conflitos e pelos ressentimentos do passado. Na prática, o que significou isso em Portugal?

Significou, por exemplo, que se criou a ‘Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista’, que, à semelhança de outras comissões de investigação criadas em democracias pós-autoritárias, pretendia “esclarecer a opinião pública sobre a violência e abusos praticados”, algo que pode ser visto como uma outra forma de satisfazer os legítimos desejos de justiça e de procurar a reconciliação, através da verdade dos factos. Por outro lado, significou também um enfoque na reparação daqueles que sofreram a repressão. Isso resultou na instituição de regimes especiais de indemnização quer por méritos excepcionais na defesa da liberdade e da democracia, quer por trabalhos forçados no Tarrafal, quer pela participação na revolta de 18 de Janeiro de 1934, ou mesmo na possibilidade de contagem especial de tempo para efeitos de aposentação por tempo de prisão e clandestinidade. Segundo os resultados do nosso inquérito realizado junto de ex-membros da oposição e resistência ao Estado Novo, 46 por cento dos inquiridos não conhece os relatórios produzidos pela Comissão do Livro Negro e 72 por cento considera que as vítimas ainda não obtiveram o reconhecimento que merecem, mas essa é outra questão que não poderá ser aqui desenvolvida.

Será que foi feita justiça? Essa foi a pergunta que, no Instituto de Ciências Sociais, apresentámos em dois inquéritos, um à população em geral e outro a membros da oposição e da resistência do Estado Novo. A resposta é claramente negativa para 65 por cento dos primeiros e 95 por cento dos segundos e diz-nos muito sobre a memória colectiva, mas não nos cabe a nós, enquanto investigadores em Ciências Sociais, voltar a julgar a PIDE. Cabe-nos, tão-só, analisar o caso português à luz do que sabemos sobre a forma como as democracias pós-autoritárias ajustam contas com o seu passado.

Esta é a melhor homenagem que podemos prestar às vítimas da ditadura e à defesa da sua memória.

Investigadora no ICS/Universidade de Lisboa e Professora auxiliar convidada de Ciência Política no ISCTE-IUL

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