Unidos, Podemos?

A sua aposta foi transformar votos em deputados e, de caminho, contribuir para destronar o PSOE como força hegemónica da esquerda espanhola. No imediato, Alberto Gárzon já ganhou.

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Gárzon juntou-se a Iglesias no palco e na campanha para disputar a liderança da esquerda Jorge Guerrero/AFP

Chama-se Alberto Gárzon e é, com apenas 30 anos, o mais jovem de todos os líderes partidários. Em tempos de novos partidos e de novos paradigmas, coordena a Esquerda Unida, federação que é herdeira directa da Transição e da Esquerda Republicana. Num país em convulsão político-partidária, com formações a lutar pelo poder dois anos depois de terem sido formadas, Gárzon é o mais popular de todos os líderes partidários e arrisca-se a influenciar, e muito, os próximos anos da vida espanhola.

Domingo à noite, os holofotes vão estar centrados nos quatro principais candidatos à chefia do Governo espanhol: os dois da “velha política”, Mariano Rajoy (PP) e Pedro Sánchez (PSOE); e os dois “emergentes” que vieram para ficar, Pablo Iglesias (Podemos) e Albert Rivera (Cidadãos). Mas perceber as novidades que esta repetição do voto vai trazer implica olhar ainda para um quinto candidato.

Como é que num momento de ruptura e de híper-mediatismo, o político mais popular entre os espanhóis é o líder da formação que tem como principal referência o velhinho Partido Comunista Espanhol? Para o politólogo Iván Redondo, isso deve-se ao perfil “muito transversal” de Gárzon. Católico, mas de esquerda, com um discurso radical, mas uma linguagem moderada. Nesse sentido, o homem que arriscou tudo numa aliança com Iglesias, é, no fundo, uma espécie de anti-Iglesias (ou o mais estranho dos seus possíveis alter-egos).

Numa campanha dominada pela polarização – os dois candidatos que se antecipam como mais votados, Rajoy e Iglesias são, em simultâneo, os que geram mais antipatia –, a imagem e a linguagem contam, e muito. “A minha atitude, que é profundamente radical no sentido etimológico do termo, manifesta-se através de modos mais tranquilos e um pouco mais elegantes, e as pessoas agradecem isso face a toda a crispação”, explica o próprio Gárzon. Paradoxalmente, ou talvez não, transmite sensatez, quando Iglesias provoca medo.

Multiplicar em vez de somar

Antes de Iglesias, e mais do que ele, foi este jovem economista andaluz a perceber que uma aliança entre a sua federação de esquerdas e o novíssimo Podemos não só não era contra-natura como, mais do que somar, multiplicava. Para os puros, trata-se de um casamento improvável, entre um partido ortodoxo e outro nascido da crise de regime, que quer “deixar a ideologia de lado”, com um líder para quem “as palavras esquerda e direita estão esvaziadas”.

Se, como indicam quase todas as sondagens, a nova aliança Unidos Podemos ultrapassar mesmo o PSOE, o mérito será em grande parte de Gárzon e ficará provado que o casamento que ele preconizou fazia, afinal, todo o sentido.

Antes das eleições de Dezembro, Gárzon apresentou-se à mesa de negociações “onde estava em clara inferioridade perante Iglesias”, explica Redondo ao diário El Mundo. Todos sentenciavam que a Esquerda Unida não ia resistir ao novo panorama partidário em que o partido alfa da esquerda era o Podemos. Só que em vez de desaparecer, o partido, arrastado pela popularidade de Gárzon, ressuscitou. E isso mudou tudo.

Um milhão de votos

“Um partido que arrasta um milhão de votos com uma fidelidade brutal [que só compete com a dos eleitores do PP] torna-se relevante”, acrescenta o analista. “A estratégia de Gárzon desde 20 de Dezembro foi muito acertada. Teve um discurso de esquerda muito coerente e não se desgastou no processo de negociações”, diz. Enquanto “o Podemos e o PSOE lutavam, ele aproveitava-se dos restos”, resume o politólogo.

Negociar com Iglesias obrigou Gárzon a enfrentar uma feroz oposição interna. O Podemos, sentenciaram os críticos, só descansará quando diluir a Esquerda Unida até a engolir. Para um partido orgulhoso da sua história e ideologia, a estratégia de Gárzon equivale a suicídio. Não é haraquiri, responde, é instinto de sobrevivência. Continuarem “orgulhosamente sós” até à irrelevância final não era opção, decidiu. Tinham de arriscar ir a jogo, mesmo com um movimento emergente, com ideias e eleitorado voláteis.

À primeira vista, é muito o que separa a Esquerda Unida do Podemos. “Nós somos mais ortodoxos. Continuamos a lutar pela luta de classes e acreditamos que o capitalismo é um sistema económico que tem de ser derrotado. Eles [o Podemos] são pós-marxistas”, descreveu Gárzon ao Financial Times. “Mas temos as mesmas raízes”, contrapôs.

Recuperar o país

Mais ainda, une-os prioridades que a crise tornou urgentes, como a rejeição sem hesitações à austeridade ditada por Bruxelas e imposta sem dó por Rajoy e a crença de que a crise actual é tão profunda que não basta mudar pormenores, é preciso refundar o próprio sistema e a ideia de democracia.

“O momento actual obrigava a que nos puséssemos de acordo. Este é um dia histórico”, declarou Iglesias, quando a aliança foi, por fim, confirmada, em Maio. “Juntos, sim, podemos”, disse Gárzon, explicando que a coligação nasce de uma vontade de “recuperar o país” à direita radical, em benefício “das maiorias sociais”.

O Podemos (o partido mais as confluências regionais que concorrem sob o mesmo emblema) teve 20,65% dos votos e 69 deputados nas legislativas de 20 de Dezembro. Já os 4% da Esquerda Unida (e quase um milhão de votos) só lhe garantiram dois lugares no Congresso. Num cenário em que muitos lugares se decidem por muitos poucos votos (a distribuição do último lugar em cada círculo beneficia os grandes partidos), o método faz com esta aliança seja mesmo uma multiplicação (mesmo antes das ideias).

No imediato, tudo indica que Gárzon ganhou a aposta. Outras serão as contas quando em causa não estiver concorrer a eleições mas governar. Eleitoralmente, esta aliança faz mesmo o sentido. Sobre a verdadeira capacidade de Gárzon influenciar Iglesias em termos programáticos, será preciso esperar para tirar conclusões. Mas esse não é o futuro imediato.

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