O projecto político europeu e a velha identidade da extrema-esquerda

Em algum momento anterior as instituições europeias beneficiaram de maior legitimidade democrática? A resposta é muito simples: nunca.

Escrevo a poucas horas da realização do referendo britânico, momento de excepcional importância na história recente da União Europeia. As sondagens apontam para um resultado muito renhido, confirmando a profunda divisão da sociedade em torno da questão da permanência no espaço político europeu. Há quem se não surpreenda com isto, recordando o tradicional eurocepticismo dos povos do Reino Unido e chamando a atenção para a virulência do discurso anti-europeu prevalecente desde há largos anos nos meios de comunicação social e em múltiplos sectores políticos. Alguns recuam mesmo ao pós-guerra para nos lembrar que Churchill, tendo várias vezes apelado à constituição de uma entidade política de carácter europeu, sempre a concebeu sem a inclusão britânica. Tudo isso é verdade e poderá ajudar a compreender o presente, mas é preciso ir mais longe para entender em toda a plenitude a crise que actualmente afecta a imagem do projecto europeu e que tem manifestações espacialmente muito mais vastas do que as ilhas de sua majestade.

Nos últimos dias, aproveitando a dinâmica gerada pelo referendo no Reino Unido, vários líderes políticos de sectores extremistas em diversos países europeus vieram também reclamar a necessidade da realização dos respetivos referendos nacionais. Marine Le Pen acaba de o fazer em França. O que os move é um objectivo muito claro: pôr em causa um projecto que nunca reconheceram como válido e ao qual atribuem todas as culpas pelo que de menos bem-sucedido ocorre no velho continente. Não há nada de novo nesta rejeição da Europa por parte dos partidos extremistas. Desde os anos cinquenta, altura em que se constituíram primeiro a CECA e depois a CEE, que os movimentos de inspiração fascista, ultranacionalista e comunista se opuseram a qualquer avanço no sentido da afirmação de uma nova instância política de natureza europeia.

Em Portugal, o discurso anti-europeu tem vindo a ser predominantemente assumido pela extrema-esquerda. Nos últimos dias sucederam-se diversas manifestações de apoio à saída do Reino Unido da União Europeia oriundas dessa área política. Parece-me conveniente analisar com algum cuidado a natureza e o sentido dessa linha de orientação.

Em nome do rigor haverá que esclarecer previamente duas coisas: embora possa haver — e haja, de facto — coincidência de pontos de vista, o que motiva a extrema-esquerda a contestar a União Europeia pouco tem a ver com o que induz a extrema-direita a adoptar a mesma atitude; pode-se, em teoria, preconizar uma opção pró-europeia sem que isso obrigue necessariamente a aderir ao projecto político-institucional que a União Europeia hoje materializa.

Salvaguardados estes aspectos, estaremos em melhores condições para denunciar com toda a veemência a má-fé que caracteriza o comportamento de quase toda a extrema-esquerda na abordagem do tema europeu. Para essas correntes de opinião, a União Europeia funcionaria em absoluto desrespeito para com regras elementares da democracia, promoveria arbitrariamente a prevalência do modelo económico neoliberal e estaria empenhada na supressão da intervenção social historicamente associada aos Estados europeus no período do pós-guerra. Essa avaliação, que a ser verdadeira não poderia conduzir senão ao reconhecimento da necessidade do regresso às velhas soberanas nacionais, está longe de corresponder à realidade. Pelo contrário, é por esta desautorizada todos os dias.

Não é verdade que o sistema de representação e decisão europeu careça de fundamento democrático. Muito menos tem qualquer razão de ser a ideia de uma pretérita idade de ouro democrática europeia, frequentemente contraposta às supostas insuficiências do presente. A evolução institucional que se tem vindo a verificar inscreve-se numa linha de reforço da participação popular, quer nos processos electivos, quer nos mecanismos de fiscalização democrática e de valorização da componente parlamentar; seja a nível europeu, seja no quadro de actuação dos respectivos Estados-membros. Em algum momento anterior as instituições europeias beneficiaram de maior legitimidade democrática? A resposta é muito simples: nunca. É claro que, atendendo à singularidade do projecto europeu, estamos perante formas directas e indirectas de legitimação popular; o que não estamos em nenhuma circunstância é perante qualquer manifestação de autocracia burocrática como soezmente pretendem fazer crer tantas vozes demagógicas no seu denodo de atacar o prestígio público de um projecto que abjuram.

É igualmente falsa a acusação de que se pretende impor através das instituições europeias a prevalência de uma linha de orientação económica marcadamente neoliberal. É certo que desde o seu início o projecto europeu privilegiou a economia de mercado e valorizou os princípios da concorrência e da livre iniciativa individual. É também verdade que, face aos efeitos da globalização e da progressiva liberalização do comércio internacional, se verificou um aumento das desigualdades de rendimentos no espaço europeu. O que não é contudo exacto é que daí tenha resultado uma atrofia tal da acção social das entidades públicas que permita falar no triunfo de uma posição neoliberal. Uma pesquisa rápida na base de dados da Pordata permite verificar que a despesa pública com a protecção social foi subindo na Europa ao longo dos anos e atingiu os seus valores máximos nos anos da crise que atravessamos.

Não deixa de ser curioso que muitos dos que a propósito do Semestre Europeu falam de ingerência indevida e anti-democrática nos assuntos internos de cada Estrado-nação sejam os primeiros a lamentar a inexistência de uma política europeia comum nas áreas fiscal, orçamental e social. Tal paradoxo exprime com especial acuidade a fragilidade do argumentário que a extrema-esquerda neo-soberanista despudoradamente exibe.

Na verdade, a extrema-esquerda portuguesa está de novo a revelar a sua velha identidade em relação ao projecto político europeu. Nisso não há nenhuma novidade. Onde pode haver motivos de inquietação é noutros sectores políticos tradicionalmente avessos a este tipo de posições e que agora parecem revelar uma estranha abertura para com as mesmas. Pode ser que seja um entusiasmo meramente momentâneo e de carácter muito superficial. Quero crer que assim seja.

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