Narrativas misteriosas de um músico à parte

Esta quinta-feira, Sei Miguel apresenta na Galeria Zé dos Bois (Five) Stories Untold, álbum em que volta a afirmar a sua condição única no contexto da música portuguesa.

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(Five) Stories Untold, disco acabado de publicar pela portuguesa Clean Feed e apresentado esta quinta-feira ao vivo na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa Nuno Martins
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Sei Miguel e o seu trompete de bolso Nuno Martins

“Entre a década de 80 e o ano de 2012, a música foi, para mim, uma actividade ininterrupta entre composição, orquestração e direcção”, diz Sei Miguel ao PÚBLICO. De tal forma que só desde 2012 é que o músico diz ter-se dedicado plenamente à trompete de bolso, o seu instrumento de sempre. Esse marcador temporal que o músico estabelece leva-o a falar pacificado de muitas gravações do seu “percurso não poucas vezes solitário” que se terão perdido. Perderam-se e ainda bem que se perderam, garante. A perda não significa forçosamente uma tragédia e terá, talvez, ajudado a que percebesse melhor aquilo que gostaria de fixar em disco e a mais bem peneirar a sua profícua actividade. (Five) Stories Untold, disco acabado de publicar pela portuguesa Clean Feed e apresentado esta quinta-feira ao vivo na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, integra-se nesse discernimento de apenas acrescentar ao mundo aquilo que seja, de facto, determinante no seu percurso.

(Five) Stories Untold é composto por músicas que “partilham talvez um carácter narrativo latente, um pouco misterioso”, mas cuja existência se deve também à oportunidade de poder contar com os músicos certos – Fala Mariam (trombone), Moz Carrapa (guitarra), Luís Desirat (bateria), Rodrigo Amado (saxofone) ou Pedro Lourenço (baixo). Qualquer uma das cinco criações foi já experimentada por Sei Miguel com várias formações e orquestrações, resultando aqui em versões que obedecem a uma tentativa de “afinar uma determinada composição”, em trio, quinteto ou octeto. Como se na sua vida mutante, o músico conseguisse, neste ou noutro momento, deitar a mão às suas invenções e fixar-lhes apenas por breves instantes uma das suas formas inconstantes.

Apesar de mais directamente herdeiro da linguagem larga do jazz e da música improvisada, Sei Miguel é muitas vezes apontado como um admirador de John Cage e de Alvin Lucier, sugerindo-se até que importa alguma dessa admiração para os seus temas. Ele coloca travões na ideia. “Estudei o que pude da obra e da pessoa do Cage”, admite. “E ainda estudo. Admiro alguns trabalhos do Lucier, mas não tenho nem a formação nem as ferramentas para poder ser influenciado por ele.” Fazedor de uma música esquiva e eminentemente livre, Sei Miguel acredita que esta se encontra por completo “inserida na jovem e já vertiginosa tradição do jazz”, acrescentando, porém, que “este não é um assunto pacífico”. “E já não tenho tempo nem saúde para me gastar nele.”

Bichos vivos

Próximo nos anos 1980 do efervescente caldeirão criativo que borbulhava em torno da editora Ama Romanta (fundada por João Peste), por onde se encontravam também Pop dell’Arte, Telectu, Nuno Canavarro, Cães Vadios ou Santa Maria, Gasolina em teu Ventre, e onde lançou o histórico Breaker (1988), Sei Miguel foi sempre uma ilha na música portuguesa. A sua música distendida e avessa a classificações definitivas foi vogando pelos anos seguintes e encontrando em Fala Mariam, César Burago, Manuel Mota, Rafael Toral ou, mais recentemente, Pedro Gomes cúmplices fundamentais para o desenvolvimento de uma obra singular.

A ligação à Clean Feed permitiu-lhe, desde 2010, passar para disco e com uma considerável projecção internacional o cúmulo a que a sua música tem chegado. Primeiro, com a edição de Esfíngico – Suite for a Jazz Combo (2010), depois com Salvation Modes (2014), à frente de um colectivo alargado que em parte encontrávamos também no seu projecto Carro de Fogo. “É a minha ovelha negra”, diz desse colectivo. “É o renascer – maduro – dos Moeda Noise [trio que manteve nos anos 80]. O país actual não está a fim de me deixar manter esse bicho vivo. O Carro de Fogo é uma música à parte na minha música.” E esse talvez seja, afinal, o epíteto mais justo para Sei Miguel: um músico à parte, como nenhum outro.

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