Nevoeiro no canal

A função histórica do Reino Unido acabou e os britânicos podem abandonar a Europa sem pesos na consciência, quando lhes aprouver.

“Nevoeiro no Canal. O Continente está isolado.” foi um pretenso título de um jornal britânico nos anos 1930, mas que retratava com perfeição o estado de espírito dos súbditos de Sua Majestade no que tocava às relações com as nações continentais da Europa. A frase acima referida tem sido periodicamente retomada pois esse estado de espírito, aparentemente, não se alterou.

Talvez porque desde Henrique VIII e da época da Reforma a Inglaterra tenha entendido que devia prescindir definitivamente de qualquer dependência do velho continente que pudesse beliscar a sua autonomia e identidade. O reverso da medalha foi o de ter de desenvolver um olhar muito atento e observador sobre o que se passava na Europa continental de modo a poder intervir, diplomatica ou militarmente, para impedir uma eventual união política e territorial da Europa.

Esta possível união foi sempre encarada como a ameaça maior ao modo inglês de estar no mundo. Estavam certos de que, no confronto directo, a Inglaterra perderia a face e, quiçá, o corpo todo.

Não nos podemos esquecer de que o Reino Unido aderiu à CEE em 1973, nos alvores da grande crise “do petróleo” dos anos 1970, embora nunca tenha feito parte do espaço de livre circulação (Schengen) nem da zona euro. A razão histórica para a entrada do Reino Unido para a “Europa” foi a de impedir a sua união política, anátema que desagradava sobremaneira à própria Inglaterra, mas principalmente aos Estados Unidos, que se encontravam no início do seu declínio como nação hegemónica. Era o desastre anunciado do Vietnam, a flutuação do dólar, a entrada da China na cena internacional.

Interessava pois aos Estados Unidos, ainda em guerra fria com os soviéticos, que emergisse apenas um grande mercado europeu para poder ser explorado pelas suas multinacionais, isto é, uma espécie de união económica sem união política.

Evidentemente, o projecto de federação das nações europeias (ou de confederação) sonhado pelos pais fundadores da CEE foi preterido, tendo as energias das instituições europeias sido centradas na criação de um mercado único (e de uma moeda única). O pretexto para tal, que os europeus engoliram, foi o de que a união económica (e monetária) defendia muito melhor os seus membros, em situações de crise. Viu-se.

Entrou pois o Reino Unido na Europa, dando a garantia de que jamais haveria união política enquanto lá se mantivesse. Uma vantagem adicional seria a de servir de poderoso agente da globalização financeira da Europa com que se ansiava já, acompanhando a introdução das novas tecnologias da informação (o que também foi conseguido com sucesso – lembremo-nos do “big-bang” da City no tempo da senhora Thatcher).

Em resultado das crises em que vivemos desde 2008 tornou-se porém óbvio que não há a mínima possibilidade de, na actual configuração da União Europeia, se evoluir para uma qualquer integração política. Tudo se fragmentou. A função histórica do Reino Unido acabou e, portanto, os britânicos podem abandonar a Europa sem pesos na consciência, quando lhes aprouver.

Por este motivo, mentalmente, a velha Albion já está fora do nosso continente. Qualquer que seja o resultado do referendo no próximo dia 23. A partir de agora, é apenas uma questão de procedimento.

Professor universitário, Físico  

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