Músicas que somos

As músicas das nossas vidas estão a destronar os antigos Requiem.

Mesmo quando não damos por ela conscientemente, a música faz parte integrante das nossas vidas. Há casos em que, para relembrar um lugar de infância, um episódio da juventude, algo que nos povoa a memória de forma vaga, a chave reside em certa melodia ou canção. Depois de trauteá-la, mesmo que apenas em pensamento, as recordações tornam-se nítidas. É como se alguém abrisse a luz numa sala às escuras: o som recria, de forma inesperada, a imagem. Às vezes, sem querermos, uma música assalta-nos a mente e insiste em lá ficar, como uma assombração — o célebre neurologista norte-americano Oliver Sacks (1933-2015) abordou este fenómeno na sua muito recomendada obra Musicofilia (Ed. Relógio de Água, 2008). Outras vezes, somos nós que convocamos uma certa música para acudir à memória ou para transmitirmos a terceiros algo nosso, as músicas que somos. Vem isto a propósito da morte de Paquete de Oliveira, estimado por tantos, que para as suas cerimónias fúnebres escolheu duas músicas que poucos imaginariam (mas ouviram-nas ecoar na Basílica da Estrela, na íntegra, na missa que antecedeu o funeral): Desfado, de Ana Moura; e a Marcha Nupcial, não a que Wagner compôs para abrir o terceiro acto de Lohengrin, mas a de Mendelssohn. A tradição manda que seja tocada nos casamentos, quando a noiva entra na igreja; mas o que é a tradição, quando a vontade humana se lhe sobrepõe? Para alguns de nós, ainda hoje é quase impossível não recordar Miguel Gaspar, outro amigo estimado, quando soa Yellow Submarine, porque foi uma das canções que ele quis que fossem tocadas no seu funeral. Nestes momentos, é a vida que se impõe à morte, e de forma definitiva. Claro que nos funerais há quem escolha (há até um ranking no Reino Unido, recolhido pela NME) sons a "condizer", como Unforgettable, de Nat King Cole, ou Angels, de Robbie Williams. Mas são cada vez mais as músicas das nossas vidas que estão a destronar os antigos Requiem.

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