O estado de graça, a razão sensível e a geringonça 2.0

A investigadora da Universidade do Minho Felisbela Lopes analisou os primeiros 100 dias da presidência de Marcelo através das notícias dos jornais diários.

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A proximidade entre António Costa e Marcelo fortalece a "geringonça" Daniel Rocha

O estado de graça de Marcelo Rebelo de Sousa tem um número maior que a sua popularidade: 75,2% das notícias escritas em 100 dias nos quatro diários portugueses – PÚBLICO, Diário de Notícias, Correio da Manhã e Jornal de Notícias – têm títulos positivos. Apenas 7,3% dos títulos são claramente negativos e 16,6% são neutros ou ambíguos.

O número resulta da análise quantitativa feita pela professora e investigadora da Universidade do Minho Felisbela Lopes através da ferramenta informática SPSS (Statistics is a Software Package), e revela que Marcelo “teve uma intensa e favorável cobertura mediática” sem a qual “nada do que quis fazer era possível". Mas esta é apenas uma das conclusões possíveis. E que não se resumem a números.

Para a antiga jornalista que hoje investiga as tendências de media em Portugal, os dados permitem uma leitura mais global: “Marcelo Rebelo de Sousa tornou-se central na actualidade noticiosa, o que, na conjuntura política recente podia criar muita entropia”, afirma. Mas o que aconteceu foi o contrário: “Estes 100 dias criaram a 'Geringonça 2.0', porque o Presidente ajudou a geringonça a tornar-se mais robusta e a transmitir uma ideia mais perene desta solução governativa”, afirma.

A grande cumplicidade e sintonia entre o Presidente da República e o Governo, em especial o primeiro-ministro, foi uma constante. E só foi suspensa uma única vez, segundo a análise de Felisbela Lopes: quando Marcelo disse que o Governo tinha prazo de validade até às autárquicas. Mas “logo no dia seguinte o próprio Presidente veio emendar a mão, desdramatizando as suas próprias afirmações”, nota.

Na “reformatação” que diz que Marcelo tem feito da função presidencial, a investigadora sublinha o “laço social” criado pela política de proximidade com recurso aos afectos. “Marcelo tornou o cargo menos bolorento, menos protocolar, tornou-se um Presidente à semelhança dos portugueses”, diz, recordando gestos como a abertura das portas do Palácio de Belém no dia seguinte à tomada de posse, o dia em que saiu de uma acção conduzindo o próprio carro ou a ida à praia sem segurança cujo vídeo circula nas redes sociais: “A afectividade tornou-se constituinte do social”.

Nos gestos e nos discursos, Felisbela Lopes identifica o recurso do Presidente ao conceito de “razão sensível” de Michel Maffesoli. “O moralismo está fora de circulação; mais vale, para compreendê-la [a alma do mundo], pôr em acção uma sensibilidade generosa, que não se choque ou espante com nada, mas que seja capaz de compreender o crescimento específico e a vitalidade própria de cada coisa”, diz o sociólogo francês, que popularizou o conceito de tribo urbana, no seu livro Elogio da Razão Sensível  [Editora Vozes, 2005].

Uma terceira característica que a análise das notícias permite identificar é a descentralização da função. “Marcelo tornou o centro um lugar nómada, um pouco à imagem do que tinha feito o Papa João Paulo II: ele levou os centros de decisão para os lugares onde ele estava, de forma efectiva”, diz Felisbela Lopes, exemplificando com as reuniões semanais entre primeiro-ministro em Évora e no Porto ou com o 10 de Junho em Paris: “Aqui fez a quadratura do círculo: pôs as gardiennes no mesmo palco que o Presidente francês, colocou toda a gente ao mesmo nível”.

Em termos de estratégia de comunicação, a investigadora identifica duas linhas, uma patente na imprensa diária e outra na semanal. “Os diários seguem a agenda presidencial”, o que é patente no facto de 81,7% das notícias serem ancoradas em acontecimentos. Já na imprensa semanal, em particular no Expresso, identifica uma estratégia disruptiva: “São os meta-acontecimentos, na maioria de fontes anónimas, em que são notícia posições presidenciais que entram em conflito com as políticas do Governo”. Para Felisbela Lopes, são duas estratégias que “provavelmente têm origem no mesmo lugar”.

Outro dado curioso que a investigadora salienta é o facto de “as redacções valorizarem muitíssimo a acção do Presidente”: mais de 44% das notícias são textos que ocupam ¾ de página, e 17% são textos com reportagem – “um número elevado face à grande escassez de reportagem nos jornais diários”, sublinha.

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