Legislar para quê? (as taxas de juro “negativas” e outros demónios)

Talvez o BdP devesse ter ficado quieto no seu canto...

A crise da banca portuguesa, como a crise das barrigas de aluguer, a crise do acordo ortográfico ou a crise dos direitos dos animais mostra que Portugal vive hoje a mais penosa ameaça à sua existência: morrer de ignorância.

Vem esta reflexão céptica (ou será cética) a propósito da polémica acerca das taxas de juro “negativas” que mereceu comentários na imprensa, discussão no Parlamento e uma oração de sapiência do Governador do Banco de Portugal pronunciada na casa da democracia.

Em declarações ao Parlamento, afirmou o Governador do Banco de Portugal, pronunciando-se acerca dos impactos das Euribor negativas que "há um limite a partir do qual é preciso ter em conta a taxa de juro negativa", para de seguida, alarmado, perguntar "o que está em causa é se queremos levar esse princípio ao ponto de cobrar taxas negativas" ou "se aceitamos que há um limite zero", para concluir, redondo qual conselheiro Acácio, "cabe a esta câmara decidir porque é uma questão politica” pois “o Banco de Portugal não pode legislar”.

Não esqueceu certamente o Sr. Governador a Carta Circular n.º 26/2015/DSC de 30 de março de 2015 onde afirmava: “quando a taxa de juro aplicada a contratos de crédito e de financiamento esteja indexada a um índice de referência, deve resultar da média aritmética simples das cotações diárias do mês anterior ao período de contagem de juros, entende este Banco que, nos contratos de crédito e de financiamento em curso, não podem ser introduzidos limites à variação do indexante que impeçam a plena produção dos efeitos decorrentes da aplicação desta regra legal.

Desta frase elíptica entenderam muitos que o BdP defenderia que, quando da soma da Euribor (negativa) à margem convencionada entre as partes o valor resultante fosse também ele negativo, a taxa de juro seria também “negativa” (as aspas justificam-se porque “juros negativos” é uma contradição nos termos, como veremos de seguida).

Talvez o BdP devesse ter ficado quieto no seu canto e este problema não teria assumido as suas proporções actuais (ou será “atuais”).

Mas a peroração do BdP na sua carta circular brinda-nos ainda com uma outra verdade como um punho – tal é a dor que nos provoca – ao afirmar “sem prejuízo de outras soluções contratuais legalmente admissíveis, entende-se ser de sublinhar que as instituições de crédito, caso estejam habilitadas a atuar como intermediários financeiros e entendam comercializar instrumentos financeiros derivados de taxa de juro como forma de prevenir os efeitos da evolução negativa dos indexantes utilizados na contratação de operações de crédito e de financiamento, devem assegurar a autonomização da contratação dos referidos instrumentos relativamente ao contrato de crédito e, bem assim, garantir o esclarecimento dos clientes sobre as caraterísticas desses instrumentos financeiros derivados.”

Tal asserção de difícil compreensão mais não é do que um convite a que bancos e particulares celebrem contratos de derivados para resolver esse problema dos riscos de a taxa de juro algum dia se aproximar de “zero” ou cair abaixo de “zero”.

Não bastava soltar um demónio como logo se põe outro à espreita: os instrumentos financeiros derivados que em vez de ficar na gaveta devem ser usados para levar os clientes a fazer o que eles não querem, não compreendem e não precisam. Não era necessário chamar para aqui os derivados.

Um ano volvido, o diabo estava à solta: os juros “negativos” estão à porta e perguntam se podem entrar. Os demagogos – felizes – podiam finalmente anunciar ao povo que em vez de pagar empréstimos os bancos lhes farão o obséquio de os brindar com dinheiro fresco ou lhes amortizar os empréstimos. E se não o fizessem cá estarão os deputados da nação para os mandar fazer. Os banqueiros assustados com a possibilidade mostraram a quem de direito – o BdP – que isso lhes traria grandes e graves prejuízos e nada ajudaria a sua débil saúde financeira.

O Governador vai então ao Parlamento explicar que aquela carta 30 de Março de 2015 nada dizia e como tal ele nada podia fazer e – já agora – seria bom que o parlamento fizesse uma lei a dizer que os juros não podem sem menos de “zero”.

Não é preciso; basta saber ler. Diz o número 1 do artigo 1145.º do código civil português: “As partes podem convencionar o pagamento de juros como retribuição do mútuo; este presume-se oneroso em caso de dúvida.”

Por outras palavras, a menos que as partes o convencionem, o mútuo é oneroso, conferindo o direito ao mutuante a receber o capital mutuado acrescido de um juro. É verdade que o código civil já tem 50 anos e por isso talvez não esteja na moda mas por enquanto não há juros “negativos”.

Já agora o problema resolve-se da seguinte forma:

1. Se as partes nada tiverem dito os bancos aplicam a fórmula contratualizada até o valor chegar a “zero” pelo que haverá períodos em que os mutuários serão poupados ao dever de pagar juros;

2. Se as partes assim o entenderem podem estabelecer valores de juros mínimos fixos, mínimos ou máximos sem necessidade de recorrer a derivados.

Se os nossos legisladores quiserem fazer-nos um favor: poderiam consagrar esta segunda regra numa lei, pois não o estando, sempre que queremos fixar uma taxa de juro lá nos impõem o famigerado “swap”, “breakage costs” e outras coisas que doem.

Haja esperança!

Advogado

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