Assis e o fascínio pelo centro-direita

Tanto Cavaco no PPD/PSD, sem ajuda, como Guterres no PS, ajudado por Francisco Assis, contribuíram decisivamente para a descaracterização ideológica e política dos seus partidos.

A fama de Francisco Assis como estrénuo defensor do centro-direita já vem de longe. Em 1998, era ele presidente do grupo parlamentar do PS durante o primeiro governo de António Guterres, e já se apresentava publicamente como guru da “nova maioria” cor-de-rosa e teorizador em Portugal do “centro radical” ou “terceira via”, na esteira da criatividade filosófica e da imaginação política de Anthony Giddens, considerado o guru do então primeiro-ministro britânico Tony Blair.

Francisco Assis conquistou tal estatuto por direito próprio ao decretar, num texto dado à estampa no PÚBLICO de 2 de Outubro de 1998, “o fim das ingenuidades ultraconstrutivistas” e o “cruzamento do liberalismo com a pulsão democrática”, varrendo assim para o caixote do lixo da História “uma esquerda obsoleta e rigidificada em torno de conceitos historicamente inoperacionais”.

Comentei então, na minha coluna do Expresso, em 10 de Outubro de 1998, o “iluminado” texto de Francisco Assis, qualificando-o como um soberbo monumento ao vazio ideológico e uma peça lapidar da retórica política pós-moderna, em que a banalidade redonda e o lugar-comum pomposo se davam as mãos para cobrir a nudez forte da verdade com o manto diáfano da fantasia. No fundo, o que Francisco Assis então pretendia, e continua a pretender, é tão-só revestir com uma roupagem teórica de pacotilha o pragmatismo político sem princípios, o governo de navegação à vista, a táctica do compromisso sistemático com a direita e a estratégia da abdicação permanente.

Para tanto, Assis não hesitava em elevar à dignidade pomposa de “matriz programática” a óbvia e comezinha necessidade de qualquer governo democrático tentar “conciliar a eficácia económica, a coesão social e a modernização cultural”. Mais ainda: não hesitava em promover à categoria de “fundamentos doutrinários” evidências tão banais como a “redescoberta da tradição liberal”, a “recusa do voluntarismo ultraconstrutivista”, a “valorização do mercado”, a “aproximação aos aspectos mais progressistas do capitalismo democrático”, a “revalorização da política e de um certo empirismo assente no princípio do racionalismo crítico”. Tudo isto para explicar como é que – tendo superado “a ilusão utópica de uma sociedade absolutamente harmoniosa” e compreendido “o papel do conflito” – “a esquerda, revalorizando a política, encontrou o caminho para o sucesso eleitoral”. Como se fosse necessária tanta conversa fiada para justificar o poder legitimado pelo voto…

O que mais me impressionou na serena complacência de Francisco Assis perante as sujeições a que o poder obriga, é que ele já parecia então um jovem velhinho. E não era caso único. Entre a novíssima geração que dirigia o PS e governava o País, não era só ele que se levava tão a sério. Também o ministro José Sócrates e o secretário de Estado António José Seguro, por exemplo, quando apareciam a falar na televisão, me transmitiam, irresistivelmente, a ideia de terem saltado directamente do berço para a gravidade de Estado. Ou seja, sem terem passado sequer pela inquietação natural dos anos da juventude e pela irreverência de um qualquer protesto político radical. Independentemente do grau de competência que cada um deles tivesse ou deixasse de ter no desempenho dos seus cargos, a verdade é que rapazes assim tão certinhos e aprumados, jovens velhinhos a transbordar de sentido de Estado, me pareciam já autênticos políticos de plástico. Do género daqueles que raramente têm dúvidas e nunca se enganam – ou que já renunciaram a falar com o coração por julgarem ter sempre razão.

Por mais que os gurus dessa “nova esquerda” suave – New Democrats, New Labour, Die Neue Mitte, Nova Maioria – se esforçassem por encontrar justificação doutrinária para a “retórica modernizadora” do seu discurso, era cada vez mais indisfarçável a sensação de estarmos perante um mero exercício de maquilhagem eleitoral para a conquista e conservação do poder político. Diziam repudiar quer o “velho” socialismo democrático (ou social-democracia ou trabalhismo) quer o neoliberalismo – mas o “centro radical” ou “terceira via” que preferiam trilhar já estavam pejados de concessões à doutrina neoliberal e pouco ou nada retinham dos princípios, valores e referências essenciais do socialismo democrático. Diziam, já então, que a querela deixara de ser entre esquerda e direita – passando a ser entre “antigos” e “modernos” – mas o conteúdo do discurso político era completamente vazio, a doutrina era prosaica, as concessões eram sistemáticas, as piscadelas de olho ao eleitorado eram constantes. Passavam o tempo a reclamar, tal como a direita, “disciplina” no trabalho e nas empresas, “segurança” nas ruas, “estabilidade” no poder e “maioria absoluta” nas urnas. Não conseguiam disfarçar que o objectivo essencial era conservar o poder - e depois logo se veria se surgiriam novas ideias para justificar velhas políticas.

Tal como a direita radical descobrira o “centro moderado”, acabando por esgotar-se na “ideologia do sucesso”, que de ideologia não tinha nada, a esquerda suave descobrira o “centro radical”, acabando por despistar-se na “terceira via”, porque o alcatrão político era escorregadio e os pneus ideológicos tinham pouca aderência. Tanto Cavaco no PPD/PSD, sem ajuda, como Guterres no PS, ajudado por Francisco Assis, contribuíram decisivamente para a descaracterização ideológica e política dos seus partidos. Depois de Durão Barroso ter andado à deriva e ter fugido para Bruxelas, sucedeu-lhe no poder um José Sócrates claramente ancorado no “centro-direita”, do qual António José Seguro nunca quis distanciar-se, antes pelo contrário, acompanhando, na oposição, a deriva de Passos Coelho, no poder, para a “direita radical”. E é neste quadro que devemos considerar como histórica, positiva e corajosa a decisão de António Costa de virar à esquerda, abrindo o leque de opções do PS e libertando-o de uma política de alianças de sentido único.

Considero-me hoje um independente de esquerda e continuo a apoiar, com convicção e firmeza, o Bloco de Esquerda, porque é com ele que as minhas ideias políticas mais se identificam. O que não me impede de saudar a mudança ocorrida no PS e defender o actual Governo.

Cronista

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