John Kerry diz ser a favor de "referendo revogatório" a Maduro

Caracas irritou-se com as declarações do chefe da diplomacia americana. Mas EUA e Venezuela decidem reiniciar diálogo.

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Fila para um supermercado em Caracas, a 13 de Junho. O país sofre uma penúria alimentar e de medicamentos Ivan Alvarado/Reuters

Os Estados Unidos e a Venezuela, com relações diplomáticas tensas desde há vários anos, decidiram retomar o diálogo, num momento em que o país sul-americano atravessa uma crise humanitária e política, com a oposição a organizar um processo para fazer um referendo ao Presidente Nicolas Maduro.

Washington propôs “começar uma nova etapa de diálogo” que passa “no imediato, por uma série de encontros ao mais alto nível”. Em Caracas, num discurso transmitido pela televisão na terça-feira, Maduro declarou “estar de acordo”.

Desde 2010 que os dois países não têm embaixadores, devido a querelas sobre os direitos humanos. Agora, o dirigente socialista afirmou estar “pronto a nomear embaixadores e a regularizar as relações” com os Estados Unidos. A afirmação foi feita depois de um encontro entre os chefes da diplomacia venezuelano, Delcy Rodriguez, e americano, John Kerry, em Santo Domingo, à margem da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA). “Falámos sobre o referendo”, explicou aos jornalistas o secretário de Estado americano. “Tentámos dizer-lhes que devem dar-lhe uma resposta, mostrando abertura e respeito pela sua própria lei”.

Os dois responsáveis concordaram com uma visita à Venezuela do sub-secretário de Estado Thomas Shannon para fazer avançar o diálogo bilateral.

“Acho que é mais construtivo dialogar do que isolar”, estimou John Kerry, respondendo à oposição, que não cessa de avisar contra os riscos de explosão social no país, asfixiado economicamente. “A oposição tem direitos garantidos pela Constituição”, insistiu, e os EUA “não fazem mais do que apoiar o processo constitucional”.

Horas antes, Kerry evocou, perante 34 Estados membros da OEA, “a situação verdadeiramente preocupante da Venezuela”, apelando ao Governo socialista que “liberte presos políticos, respeite a liberdade de expressão e acabe com a penúria alimentar”. Manifestou-se a favor de um “referendo revogatório justo e oportuno” sobre o chefe de Estado, muito impopular num contexto de grave crise económica, apelando aos venezuelanos que “manifestem a sua vontade de forma democrática”.

Caracas manifestou imediatamente a sua irritação: “As questões internas da Venezuela são geridas pelos venezuelanos”, respondeu Delcy Rodriguez.

Numa altura em que o país petrolífero se afunda com a queda dos preços do crude, a população sofre com horas de filas de espera nos supermercados, cortes de electricidade diários, e graves penúrias alimentares e de medicamentos.

Duas pessoas morreram e mais de 25 ficaram feridas na terça-feira durante pilhagens em Cumana, no Leste, segundo a deputada da oposição Milagros Paz. “Entre 69 e 78 estabelecimentos” foram pilhados nesta localidade de cerca de 800 mil habitantes, adiantou.

Sete em cada dez venezuelanos desejam a partida de Maduro, eleito em 2013 com um mandato até 2019. Aproveitando a onda de descontentamento, a oposição de centro-direita, depois de ter conquistado o Parlamento nas últimas legislativas, pretende organizar este ano um referendo para a sua demissão. Mas o Executivo recorreu à justiça para denunciar “fraudes”, e pretende fazer tudo para o atrasar até 2017, o que impediria a marcação de eleições antecipadas, e um referendo acabaria apenas por substituir Maduro pelo seu vice-presidente.

Nas últimas semanas, as pressões internacionais acentuaram-se a favor do referendo, nomeadamente entre a OEA, cujo secretário-geral, o uruguaio Luis Almagro, estimou que a Venezuela atravessa uma “alteração da sua ordem constitucional”. O país estará no centro de uma sessão extraordinária da organização a 23 de Junho, em Washington. Rodriguez apelidou Almagro de “golpista”, “mandatado por Washington” com um objectivo claro: “Uma intervenção militar na Venezuela”.

“Com a Venezuela, os EUA têm que jogar subtilmente”, comentou à AFP Michael Shifter, presidente do think-tank Inter-American Dialogue: “Face à crise humanitária na Venezuela, Kerry não pode ficar silencioso, mas também não pode ir longe demais”.

A Assembleia Geral reflectia na terça-feira as divisões da América Latina sobre esta questão, com a Nicarágua e o Equador hostis a Luis Almagro, e o México e a Colômbia dando-lhe a sua aprovação.

Mas a maioria dos países concorda com a necessidade de um diálogo entre o Governo venezuelano e a oposição, que tem um dos seus líderes, Henrique Capriles, numa ronda na Argentina e Paraguai para tentar reunir apoios.

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