Escolas públicas, vidas privadas

Quando cidadãos da classe média, que fazem parte das famílias ditas normais, tiram os seus filhos de uma escola pública e os transferem para a privada estão a fragilizar o sistema público.

1. - A secretária de Estado Adjunta e da Educação, Alexandra Leitão, exerceu a sua liberdade de escolha e matriculou as suas duas filhas numa escola privada. Tudo bem. Seria hipocrisia aproveitar esta sua opção para denegrir a sua sinceridade e empenho na defesa da escola pública. Pela sua inteligência, pela sua energia e pela sua convicção, Alexandra Leitão tornou-se o rosto do combate contra a continuidade dos contratos de associação que autorizavam o Estado a financiar escolas privadas em áreas onde o serviço público existe, e esse é um galhardete que ninguém lhe tira. Mas a falta de articulação entre a sua opção privada e a sua luta pública não é neutra no debate em curso. Dos políticos, para lá de palavras, esperamos exemplos. E o exemplo de Alexandra Leitão vai ao encontro dos defensores da liberdade de escolha. O racional é óbvio: a secretária de Estado fez uma opção pela escola privada e pôde pagá-la. Há milhões de portugueses que gostariam de fazer a mesma escolha, mas não têm dinheiro para tal.

A defesa da escola pública tornou-se o mais importante debate ideológico sobre o modelo de país que queremos e na troca de argumentos entre os dois lados da barricada entram não apenas as políticas públicas mas também as escolhas privadas. Se aceitarmos como válida a tese segundo a qual a escola pública é a melhor ferramenta para se garantir a igualdade de oportunidades e a integração social, evitando a segregação típica das sociedades latino-americanas, não podemos esperar que sejam apenas os governos a defender a escola pública. Numa questão tão importante, esse é um dever colectivo. Quando cidadãos da classe média, que fazem parte das famílias ditas normais, tiram os seus filhos de uma escola pública e os transferem para a privada estão a fragilizar o sistema público. Estão a abandoná-lo aos alunos das classes mais desfavorecidas, os que não têm possibilidades financeiras para exercer a sua escolha. Há mil razões sensatas para justificar a sua opção, mas a consequência da sua liberdade é o que é.

A escola pública não é boa porque é pública mas porque tem essa função crucial de colar diferentes estratos da sociedade. E é também boa porque, no contexto actual, garante com razoáveis níveis de exigência a aprendizagem e a integração das crianças e os jovens – os rankings ou os relatórios sobre o desempenho no ensino superior provam-no. Essa valia e competência está, porém, em risco. A crise económica, com o aumento do desemprego e da pobreza, agravou as suas dificuldades, todos os sabemos. Os professores são sobrecarregados com expedientes burocráticos e estão longe de ter o reconhecimento social que merecem. A sua autoridade perdeu-se algures entre o “eduquês” politicamente correcto e a indisciplina de jovens desenquadrados. Os nossos filhos só têm uma vida e em muitos casos assusta-nos a ideia de os enviar para lugares assim, incertos. Mas se os que, apesar de tudo, conseguem sobreviver aos problemas da crise abandonarem as escolas públicas aos alunos de famílias com menos sorte estamos a condená-las à guetização. Dada a qualidade das escolas públicas, ainda vamos muito a tempo de o evitar.

Por essa mesmíssima razão, uma secretária de Estado que tanto se bate pela escola pública não devia expor-se ao anátema do Frei Tomás. Não devia apregoar altíssimos princípios e deixar a sua prática para outros. Alexandra Leitão justifica numa entrevista à Visão a sua escolha com o desejo de garantir um “currículo internacional” às suas filhas. A inscrição na Escola Alemã garante-lhes, afirma, “uma educação com duas línguas que funcionem quase como maternas”. Se não fosse essa preocupação, “andariam obviamente numa escola pública”. O que ela nos diz com esta expectativa é que as escolas públicas não providenciam nem o ensino capaz de duas línguas nem o tal “currículo internacional”. Ou seja, quem for exigente com a educação dos filhos, trate de vida e vá para as privadas. Quem não tiver possibilidades, pois que abdique do “currículo internacional”. Com esta singela explicação, Alexandra Leitão acrescenta realismo à caricatura da esquerda caviar que adora discutir o problema dos pobrezinhos exibindo as suas boas camisas Gant em cenários de lagosta e vinhos caros.

Ficava por isso bem a Alexandra Leitão ler o extraordinário exemplo pessoal da jornalista Nikole Hannah-Jones publicado esta semana no The New York Times. Ela inscreveu a sua filha de quatro anos numa escola pública, porque acredita “que são as escolhas individuais dos pais que melhoram o sistema” educativo e porque se recusa fazer o que outros fazem quando “os seus valores sobre a integração colidem com a realidade das escolas para onde mandavam os seus filhos”. Hannah-Jones explicava num texto que fez capa do jornal que “uma família, ou mesmo algumas famílias, não podem transformar uma escola segregada, mas se nenhum de nós se dispuser a ir para lá, a escola não vai mudar”.

Alexandra Leitão (e o Governo) não perdeu a razão na luta que travou contra as redundâncias dos contratos de associação nem perdeu legitimidade para se bater por mais e melhores meios para melhorar a escola pública. Mas, politicamente, ficou vulnerável. Perdeu argumentos para a ala radical do PSD ou do CDS que defendem o mito da liberdade de escolha, como se num “mercado da educação” a informação fosse simétrica – ler a propósito o texto decisivo de Teresa de Sousa no PÚBLICO. E deixou de ter autoridade para responder aos pais que tinham os seus filhos nos colégios que deixaram de ser financiados pelo Estado e que vão ser obrigados por falta de recursos pessoais a inscrevê-los nas escolas públicas. Eles, ao contrário de Alexandra Leitão, não podem ambicionar que os seus filhos tenham duas línguas maternas.

2. – Teria sido melhor para todos e para o próprio que Paulo Portas tivesse deixado passar algum tempo antes de se empregar como consultor numa empresa que com ele fez várias viagens de negócios quando era ministro. Mas para um político com tantas arestas na carreira (os casos dos sobreiros, dos submarinos, etc), este está longe de ser o crime que deputados do Bloco e do PCP andam por aí a sugerir. Porquê se torna então esta polémica tão interessante?

Há um subtexto nestas críticas que vale a pena considerar: o desprezo, quase ódio que as empresas privadas continuam a suscitar à esquerda mais radical. No país com a mais curta memória do mundo, já ninguém se lembra que foram empresas como a Mota Engil que nos salvaram do colapso nos anos de chumbo da troika, conseguindo manter activo o motor da exportação quando todos os sistemas entraram em falência. Se Paulo Portas conseguir ser um lóbista competente e abrir novas possibilidades para o seu novo patrão, só teremos a celebrar uma boa notícia. Havendo negócios há emprego e há crescimento.

Casos como o de Paulo Portas, de políticos que usam a sua experiência e “capital social” para aumentar a carteira de negócios de empresas, existem em todos os países democráticos. Há alguns que suscitam dúvidas éticas – o de Maria Luís Albuquerque ou o de Gerhard Schroeder, que deixou o Governo para ir para a estatal russa Gazprom, por exemplo. Outros, nem tanto. Portas é um desses casos. Ele nunca foi ministro das Obras Públicas. Nunca, que se saiba, fez contratos públicos com o seu novo patrão, nem influenciou nem teve acesso a dados sensíveis do sector. Se ele sai da política para fazer negócios lá fora em nome de uma empresa competente e credível como a Mota Engil, faz muito bem. Se ganhar à comissão e ganhar muito, todos estaremos também a ganhar.

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