A última lição

Morreste no teu posto, meu provedor, provedor de todos nós, reflectindo por um jornalismo melhor.

Fui teu aluno brevemente, ainda que teu discípulo sempre, antes e depois. Mas sobretudo, teu cada vez mais amigo e cúmplice, desde que, a partir de 2008, coincidimos como provedores nas instalações da Rádio e Televisão de Portugal. Uniram-nos ainda mais a luta frustrada de um grupo de jornalistas, junto da Presidência da República ocupada por Aníbal Cavaco Silva, pela concessão do Ordem da Liberdade ao nosso camarada de profissão e madeirense como tu, Tolentino de Nóbrega; e, recentemente, o orgulho de te ver como sócio número 1 da Associação de Estudos de Comunicação e Jornalismo (AECJ), de cujas iniciativas foste o primeiro orador.

Constituíramos nos últimos tempos uma espécie de tertúlia a dois, marcada por continuada reflexão crítica sobre o jornalismo e a vida nacional.

Provavelmente porque sabem tudo isso, os do PÚBLICO pediram-me um texto assim, mais pessoal. Aceitei, mesmo não fazendo parte, como acabei de tornar claro, do grupo nem dos teus amigos mais velhos ou mais íntimos, nem dos teus condiscípulos, nem dos teus colegas académicos, nem dos teus antigos alunos.

Aceitei porque me considero no dever de dar testemunho, junto dos leitores do jornal de que foste provedor até à véspera da morte, de uma pequeníssima parte do que usufruí deste convívio mais reservado. É que, dela, emerge a tua grandeza profissional, cívica e humana.

Tudo isso, no fundo e a vermos com atenção, está contido, na meia dúzia de linhas da carta que escreveste à directora do PÚBLICO. Não preciso de o relevar, porque os leitores, a quem afinal te diriges por intermédio de Bárbara Reis, já as puderam ler no site e agora nesta edição em papel do PÚBLICO.

Poucas pessoas, fora dos pequenos circuitos académico e jornalístico, sabiam que estavas doente. Menos eram ainda as que estavam a par da gravidade da doença. Pergunto-me se algum leitor se terá dado conta, segunda-feira após segunda-feira, ao longo dos meses, de que o autor daquelas reflexões havia passado a semana em intermináveis tratamentos oncológicos.

Sabendo dessas sessões, e verificando, a partir de certa altura, os efeitos devastadores que elas não conseguiam evitar, cada texto teu que lia era, para mim, um milagre. E mais uma lição, silenciosa, escondida, anónima, de força anímica, de determinação, de profissionalismo.

Nunca te ouvi falar em desistir. Na véspera da partida, ao escreveres a carta, apesar da dúvida, já grande, ainda alimentavas a esperança, não só de te poderes explicar aos leitores, mas também de deixares um último contributo para que o PÚBLICO melhor os sirva.

Para usar as tuas palavras, o momento da morte não o consentiu. Mas não mais esquecerei, poucas horas antes, daquela tua busca ansiosa pelo título do livro, dicionário, ensaio, sabemos lá, que pedias te levassem, de imediato. Como se dessa última citação dependesse o texto da crónica prometida, antes do imenso Adeus.

Morreste no teu posto, meu provedor, provedor de todos nós, os cada vez mais raros leitores (ouvintes, telespectadores) que têm o privilégio de contar com alguém que todas as semanas, com eles reflectindo alto, dá voz às suas dúvidas, às suas reclamações, às suas críticas. Por um jornalismo melhor.

Jornalista, antigo membro da direcção editorial do PÚBLICO

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