O laboratório espanhol

Se, no dia 23 de Junho, os Britânicos votarem a favor do Brexit e, a seguir, os Espanhóis voltarem a votar mal, a nova normalidade fica instalada na política europeia.

As eleições espanholas de 20 de Dezembro passado foram um terramoto político cujas consequências continuam a ser difíceis de calcular. O sistema bipartidário, que assegurou a consolidação da democracia pós-autoritária, deixou de existir: o Partido Popular (PP) e o Partido Socialista (PSOE), que somavam mais de 80% dos sufrágios em 2008, ficaram reduzidos a 50% dos votos e nenhum deles tem a maioria absoluta dos mandatos parlamentares. No seu lugar, formou-se um sistema multipartidário com mais dois partidos novíssimos, o Podemos, à esquerda, o Ciudadanos, à direita, que representam, em conjunto, um terço dos eleitores.

Os Espanhóis votaram mal, o impasse instalou-se e foi impossível formar Governo. O PP, como partido mais votado, dispôs-se a fazer coligações governamentais com o PSOE ou com os Ciudadanos, que não podiam nem um, nem outro, aceitar as propostas de Mariano Rajoy sem se suicidar. O PSOE tinha a alternativa, defendida por Felipe Gonzalez, de se abster para deixar passar um novo Governo do PP nas Cortes, mas essa estratégia era demasiado arriscada para um Secretário-Geral sem experiência, cujo objectivo era evitar, a todo o custo, a repetição de eleições. O PSOE e o Ciudadanos fizeram um acordo, mas não tinham maioria sem o Podemos, o qual só aceitava uma coligação da esquerda com a sua presença no Governo.

Cinco meses depois, o Rei convocou novas eleições, marcadas para o próximo dia 26 de Junho. Nem o PP, nem o PSOE, nem o Ciudadanos mudaram as suas estratégias. Contra as melhores expectativas, Rajoy conseguiu manter intacta a sua posição no PP, que continua a ser partido mais votado nas sondagens: a linha maurassiana – tenir! – é tudo o que resta à direita tradicional. O PSOE recusa alianças com o PP e o Podemos e quis ter uma iniciativa na questão catalã, com uma proposta de revisão constitucional, mas não pode mudar a lei fundamental sozinho. O Ciudadanos não pode render-se a Rajoy sem perder a sua crediblidade ao centro, nem insistir no acordo com os socialistas, sem prejudicar a sua credibilidade à direita.

Pelo contrário, o Podemos mudou de posição. Primeiro, cooptou a Esquerda Unida, e a nova coligação eleitoral – Unidos Podemos – ultrapassou o PSOE nas sondagens, onde está a três pontos percentuais do PP. Segundo, alinhou com a principal reivindicação dos separatistas e passou a ser a favor da realização de um referendo na Catalunha. Terceiro, inventou uma nova “narrativa” – a especialidade da casa – e passou a ser social-democrata. A nova social-democracia do Podemos é, ao mesmo tempo, a velha social-democracia do contrato social europeu do pós-Guerra, destruída pela “Terceira Via”, e a velhíssima social-democracia de Marx e Lenine, ambos, segundo Pablo Iglesias, membros de partidos sociais-democratas – o que é formalmente exacto no caso de Lenine, dirigente da facção maioritária (bolchevique) do Partido Social-Democrata russo, o que não o impedia de ser, como o seu tutor alemão, um bom comunista.

Entre o oportunismo político, as sondagens eleitorais e a má-fé semântica, Iglesias e o Podemos parecem dominar a próxima eleição. Esse facto é, em si mesmo, uma vitória considerável. Em poucos meses, a esquerda radical soube tirar partido da crise económica e da mudança geracional e pode conseguir moldar o magma que ocupa o vazio deixado pelo desaparecimento do centro do sistema politico, resultante do recuo dos partidos tradicionais e da crescente polarização imposta pela força crescente dos populistas. Ninguém sabe definir nem a ideologia, nem o programa do Podemos: a ambiguidade é uma das armas da nova vanguarda, que se concentra na denúncia clássica das “castas”, na convergência, paralela e paradoxal, com o “patriotismo soberanista” anti-europeu e com os nacionalismos separatistas anti-espanhóis e na mobilização das correntes anti-americanas, em alinhamento com os regimes autoritários do Irão e da Venezuela.

A opinião pública está, finalmente, preocupada. O Centro de Investigaciones Sociologicas (CIS) indica que mais de 80% dos espanhóis consideram a situação política péssima, mas não querem regressar ao regime bipartidário e defendem que os partidos formem coligações para poderem governar.

Os cenários mais prováveis não parecem admitir o regresso à velha normalidade. Desde logo, a crise económica e a continuidade da política europeia reclamam uma maioria dos partidos tradicionais, que pode destruir o PSOE e deixar o Podemos ocupar o seu lugar. Por outro lado, a maioria alternativa do Podemos com o PSOE é uma fórmula de instabilidade permanente das políticas internas e dos alinhamentos externos da Espanha, incluindo as relações com os Estados Unidos no domínio da defesa e com a Alemanha na União Europeia. Por último, não se pode excluir o prolongamento do impasse, que mina a legitimidade da democracia espanhola.

Se, no dia 23 de Junho, os Britânicos votarem a favor do Brexit e, a seguir, os Espanhóis voltarem a votar mal, a nova normalidade fica instalada na política europeia.

Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL)

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