Camões, justificação do 10 de Junho

Símbolo da memória colectiva para enfrentar grandes crises.

A polémica em redor dos feriados nacionais não atingiu o 10 de Junho. Sejam quais forem os aproveitamentos de governos e governantes de vários regimes (monarquia absoluta e monarquia liberal, Iª república, salazarismo e IIª república) Camões não se pode reduzir aos jogos partidários e aos expedientes da retórica política.

A leitura d’ Os Lusíadas e outras obras que nos legou ultrapassa as manipulações arbitrárias e circunstanciais. O homem – tal como o retrataram os que o conheceram – manifestou-se com frontalidade e independência. Não recorreu – como era habitual na época – a um prefaciador para fazer a apresentação d´ Os Lusíadas, nem escondeu o protesto contra a situação que o País vivia.

A Inquisição estava instalada desde 1536. A Censura encontrava-se em pleno funcionamento. Os livros eram submetidos à leitura prévia e só podiam ser impressos e postos a circular depois da autorização do Santo Oficio. Assim aconteceu, em 1572, com Os Lusíadas. Sousa Viterbo e Aquilino Ribeiro analisaram hipóteses do que terá sido truncado no manuscrito. Também se pronunciaram acerca de intervenções do censor – em cumplicidade negociada com o Poeta - que fabricou versos atribuídos a Camões, para deixar passar outros.

Mesmo assim, em sucessivas estrofes d’ Os Lusíadas, deparamos um sentido crítico em torno de questões teológicas, politicas e sociais. Apelos contínuos para a urgência da liberdade e justiça para uma sociedade construída nos princípios da honra e nos valores da solidariedade.

Nas horas de crise e de recuperação de identidade nacional, Os Lusíadas acompanharam a resistência ao domínio filipino, as lutas liberais no século XIX, a formação do Partido Republicano, a aproximação de Portugal das exigências e solicitações da Europa. Incorporaram, na síntese de Jaime Cortesão, os fatores democráticos da constituição de Portugal, o humanismo universalista dos portugueses, a abertura para o mundo e a invenção da modernidade. Gago Coutinho – também um estudioso de Camões que se envolveu em controvérsias sobre a dupla rota de Vasco da Gama - levou uma edição d’ Os Lusíadas, na travessia aérea do Atlântico.

Transpondo em múltiplos aspectos as outras grandes epopeias, Camões coloca-nos perante um Portugal conquistado palmo a palmo, com homens inteiros, que olham de frente, na terra e no mar, os impulsos cósmicos da natureza. Viveram a aventura e a descoberta e partilharam a fatalidade e a apoteose.

Toda esta energia cívica incentivou o entusiasmo de Teófilo Braga, numa campanha de opinião pública, para celebrar, em todo o País, o IIIº centenário da morte de Camões. A informação existente indicava o dia 10 de Junho, como data da morte. Foi exatamente nesse dia que se realizaram, em 1880, as comemorações com a participação de intelectuais e políticos e significativa mobilização popular. Permaneceram memoráveis as cerimónias que decorreram em Lisboa. Marcaram a coesão do Partido Republicano conciliando as tendências e os grupos dispersos no pensamento e na ação.

Proclamada a República, a 5 de Outubro de 1910, o Governo Provisório, presidido por Teófilo Braga, e para afirmar a supremacia do poder civil sobre o poder religioso, deixou de reconhecer os dias santificados inscritos no calendário litúrgico. Decretou, logo a 12 de Outubro, os seguintes feriados nacionais e assim designados: 1 de Janeiro, consagrado à Fraternidade Universal; 31 de Janeiro, consagrado aos percursores e aos Mártires da República; 5 de Outubro, consagrado aos Heróis da República; 1 de Dezembro, consagrado a autonomia e independência e restauração da Pátria; 25 de Dezembro, consagrado à Família. Além destas efemérides cada município, segundo o critério das respectivas Câmaras, podia assinalar o seu feriado. Lisboa escolheu o 10 de Junho que, sob a égide de Camões, em 1880, uniu o Partido Republicano.

A Constituição de 1933 revogou a legislação existente nesta matéria. Todavia, para Salazar o 10 de Junho começou por ser o dia da raça, uma das expressões salientadas no discurso proferido na inauguração do Estádio Nacional do Jamor, em 1944, ainda em plena Guerra Mundial, quando os ódios raciais continuavam a enviar judeus para os campos de concentração. Terminada a guerra, em Maio de 1945, perdurou a denominação dia da raça. O decreto 34596, de 4 de Janeiro de 1952, determinou um reajustamento com base na Concordata estabelecida com a Santa Sé repondo, tal como no tempo da monarquia, nos feriados nacionais, dias santificados impostos pela igreja católica.

No pós II ª Guerra Mundial e no pós entrada de Portugal para as Nações Unidas procurou-se retirar estigmas do Ato Colonial, proclamar virtudes da colonização portuguesa, ausência de racismo, evidência de sociedades multiculturais inseridas no todo nacional. Os movimentos de emancipação africana, nos anos 50, anunciavam a iminência de guerrilhas em três frentes de combate Angola, Guiné e Moçambique.

A partir de 1963, Salazar transformou o 10 de Junho no Dia de Portugal para exaltar as Forças Armadas e prosseguir a Guerra Colonial. Marcelo Caetano manteve a tradição. Durante dez anos, o Terreiro do Paço, foi o grande palco das condecorações de vivos e mortos que se distinguiram em operações militares. Com o 25 de Abril, a independência de Angola, Guiné e Moçambique e outros territórios ultramarinos, o 10 de Junho ficou a chamar-se não só Dia de Portugal, mas também de Camões e das Comunidades Portuguesas.

O regresso de Camões, exemplo de uma vida pelo mundo em pedaços repartida, veio reforçar um símbolo do imaginário coletivo. Os Lusíadas representam motivo de reflexão para vencer a impaciência e sacudir o fatalismo em qualquer de tempo de angústia e incerteza. Camões celebrou as memórias gloriosas de Portugal, sem virar as costas às tensões políticas e às realidades sociais. Daí a atualidade das suas advertências. Para reencontrar o homem que, em cada dia, se revela, se oculta e se afirma, na aspiração da liberdade. Para romper o medo, banir a superstição e quebrar as algemas das tiranias passadas, presentes e futuras.

Jornalista e investigador, membro da Academia das Ciências

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