Uma civilização meio manhosa diante do abismo

À mesa de um simpósio científico, a evolução da espécie é discutida em paralelo com a evolução da linguagem. Gonçalo Waddington mostra no Alkantara e no FITEI O Nosso Desporto Preferido – Presente, primeira parte de uma tetralogia que se estenderá até 2018.

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A mesa acolhe um simpósio, mas é uma filha óbvia dessoutra representada n’A Última Ceia. Michel, cientista misantropo, acompanhado dos seus acólitos, discursa para eles, tenta animá-los na sua cruzada laboratorial, rogando a estes “Deuses da ciência” que tem a seu lado: “Estamos na recta final, sabemo-lo bem, é nesta altura que falham os marinheiros mais corajosos, mas não será o nosso caso, garanto-vos!” E aponta para a barriga de Hera, onde desponta numa suave curva a sua obra colectiva, um primeiro exemplar do Novo-Humano, um refinamento das características anatómicas e fisiológicas da espécie, o primeiro grande filho de uma mulher fecundada pela ciência.

Aos poucos, esta criação de um Novo-Humano que Gonçalo Waddington atira para os primeiros minutos de O Nosso Desporto Preferido – Presente, que parece fabricar-se a partir de elementos recolhidos na leitura de Admirável Mundo Novo (e é verdade, assim o diz o autor e encenador) e de obras de Michel Houellebecq, vai-se revelando. Da investigação do genoma e defesa da eugenia (o ‘melhoramento da espécie’ realizado em laboratório), a peroração de Michel transforma-se, aos poucos, numa esgrima da linguagem travada com O Prudente. É o Prudente, aliás, que lhe desvenda o pecado: “Sois vós quem larga palavras como um idoso incontinente.” Faz tudo parte de uma neblina inicial que Waddington gosta de despejar sobre as suas peças – assim era já com Albertine – O Continente Celeste –, mas também de encontrar enquanto espectador. “Gosto muito daquelas peças em que, no início, estamos a ver e mesmo a estranhar”, confessa ao Ípsilon. “Quando estava a ver o Germinal, do Antoine Defoort e do Halory Goerger, também estranhei aqueles gajos a mexer nas mesas. Mas gosto dessa sensação e depois ser apanhado, encontrar o sentido.”

Também nesta primeira paragem de uma tetralogia que se concluirá em 2018 (de 9 a 11, D. Maria II, Lisboa, Alkantara; 17 de Maio, Rivoli, Porto, FITEI), Waddington põe em cena cinco personagem que “parecem os Power Rangers, diante de uma mesa tipo simpósio, como se existissem em 2D e que falam de uma forma super rebuscada”. O que se segue depois é um despique de linguagem, uma batalha em que só as palavras são desembainhadas, imaginada como se fosse “uma desgarrada entre Luiz Pacheco e Mário Cesariny”. E é isso que move o autor, por detrás dos excessos verbais a que se entregam assim que Michel sugere a abstinência sexual como medida de aplicação inevitável.

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Tendo-se dedicado a uma aturada pesquisa sobre civilizações, e não se furtando à sua inclinação natural pelo esmiuçar de literatura científica (sobretudo cosmologia e astrofísica), Gonçalo Waddington serve-se destes seus impulsos criativos para alimentar também uma vontade de conhecimento. Ou seja, escreve peças movido pela curiosidade mas também como desculpa perfeita para enfiar a cabeça nos livros, encharcar-se de ideias e daí extrair qualquer coisa como “a linguagem enquanto processo civilizacional”. É disso que se trata quando ouvimos Afrodite indignar-se contra a abstinência sexual alegando que “a foda não é factor para esta equação”, retorquindo Michel que também conta o “desgaste de material, ó trambiqueira-mor”. É disso que se trata quando, depois de ler tratados sobre os tipos de civilização de acordo com a evolução do consumo energético, documentos do SETI Institute ou o livro Das Células à Civilização, larga estas cinco personagens numa discussão em que o cuidado é colocado na rima, na beleza, “mas em que tudo é meio manhoso”. “Se não nos preocuparmos em salvar a beleza da palavra e da poesia”, diz, “está tudo perdido.” O processo de selecção natural da espécie humana, acredita Waddington, é análogo á selecção natural de linguagem. Um e outro evoluem, provavelmente em direcção à extinção. E daí a questão da intervenção em laboratório: garante-se ou condena-se o futuro?

Badmington é lei

“Quando estávamos à beira do abismo, tomámos a decisão certa: demos um passo em frente” – João Pinto, defesa direito do FC Porto nas décadas de 80 e 90. Nem só de cientistas, romancistas ou filósofos se vale Gonçalo Waddington. A famosa tirada do futebolista ilustra também o plano de Michel para uma humanidade à beira da extinção. Em vez da reprodução, portanto, a abstinência. Tão importante de ser discutida quanto jogar uma partida de badmington. Se é até aí que nos leva a primeira parte de O Nosso Desporto Preferido – aceita-se apostas para determinar se a preferência incide sobre: a) o despique de linguagem; b) a prática sexual; c) o badmington –, é também aí que arrancará, no início de 2017, a segunda parte, trocando o subtítulo Presente por Futuro Distante. Daqui por 200 mil anos, imagina Waddington, seremos confrontados com os tais seres humanos aperfeiçoados, resultantes das experiências destes cinco, e cujo contacto com o passado através dos relatórios dos cientistas será interpretado com a devoção dedicada à Bíblia. De onde o badmington, referido nos ditos relatórios, se tornará lei. Mais uma vez, a linguagem e a transmissão e a interpretação da linguagem como definidora dos comportamentos humanos. Em nome da palavra, faz-se, obedece-se.

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Tal como a ciência, também a arte parte de perguntas. Com a diferença, considera Waddington, de que nos processos artísticos “caso se chegue a uma resposta, normalmente é uma resposta que implica fazer uma nova pergunta e continuar num loop eterno, ou então é uma resposta que pode apenas ajudar a perceber melhor a pergunta”. Mas o autor cita Proust – a partir do qual escreveu Albertine e cuja descrição da relação entre memória e cheiro ou sabor foi mais tarde validada por um neurocientista – ou os físicos teóricos como exemplos de que mesmo a ciência é comandada pela imaginação. E também pela ironia ou pelo sarcasmo, ou não transpusesse Waddington para palco as dúvidas que pretende levantar com o seu texto tomado pelo delírio.

Até porque, em primeiro lugar, e dando generosa boleia a essa tendência delirante, está o prazer torrencial da linguagem, de usar as palavras como ferramentas fantasiosas, de serem usadas para o confronto e a discussão, mas em que Michel, apesar de tudo, ao considerar os restantes abaixo da sua condição intelectual, acaba por encontrar a sua satisfação excitando-se com uma cadeira – que não representa senão uma relação onanista, de alguém deslumbrado com essa pessoa tocada pelo génio que encontra sempre que se olha ao espelho. Essa gente que se verga aos prazeres carnais depois de analisar umas gotinhas ou espreitar um ADN, por muito que queira, nunca conseguirá elevá-la. A sua esperança está, por isso, no Novo-Humano. A espécie, a subsistir, só se melhorada.

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