Um Nabucco com twist para encerrar a temporada do São Carlos

A ópera de Verdi que agora se estreia põe em cena a dimensão intemporal — e actual — da intolerância e dos jogos de poder e de conquista.

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Elisabete Matos, a Abigaille desta produção do São Carlos DANIEL ROCHA

Uma nova produção da ópera Nabucco, a primeira criação marcante da carreira de Giuseppe Verdi como compositor e uma das suas obras mais conhecidas do grande público — famosa pelo emblemático Va pensiero, o coro dos escravos hebreus, que se viria a converter no símbolo do nacionalismo italiano no âmbito do Risorgimento — sobe esta quinta-feira (às 20h) ao palco do Teatro Nacional de São Carlos, marcando o encerramento da presente temporada lírica. Com direcção musical do maestro italiano Antonio Pirolli e encenação do brasileiro André Heller-Lopes, conta nos principais papéis com o barítono Àngel Òdena (Nabucco) e com a soprano Elisabete Matos (Abigaille), uma dupla que tinha já interpretado com sucesso os protagonistas do Macbeth, de Verdi, em Fevereiro de 2015. O restante elenco é formado por Simon Lim (Zaccaria), Maria Luísa de Freitas (Fenena), Carlos Cardoso (Ismaele), Carla Simões (Anna), André Henriques (Grande Sacerdote) e Pedro Rodrigues (Abdallo) e a interpretação conta ainda com a habitual participação da Orquestra Sinfónica Portuguesa e do Coro do Teatro Nacional de São Carlos.

Baseado num libreto de Temistocle Solera, o Nabucco teve a sua estreia em 1842 no Teatro alla Scala de Milão. O seu tema bíblico, assentando numa história de conquistas, ocupação, opressão e exílio, assume uma dimensão intemporal já que convoca as questões da insaciável vontade de poder e dos seus jogos, a conquista de territórios, o domínio pela escravatura dos conquistados e os conflitos religiosos e familiares que alimentam ódios mortais. Musicalmente, apresenta influências do modelo da Grand Opéra francesa e dos quadros do bailado de Antonio Cortesi sobre o mesmo tema que, juntamente com a peça Nabucodonosor, de Anicet­Bourgeois e François Cornue (1836), serviu de base ao libreto de Solera.

A acção passa­-se no antigo reino de Judá e no Império Neo­Babilónico fundado por Nabopolassar no século VII a.C. O seu filho, Nabucodonosor, é uma figura histórica, segundo a tradição o autor dos famosos Jardins Suspensos da Babilónia. Herdeiro do reino assírio, conquistado pelo seu pai, tentou expandi-lo, submetendo muitos dos reinos a Oeste do seu império, como o de Judá, cuja capital era Jerusalém. Ao conquistar essa cidade em 597 a.C., Nabucodonosor capturou e levou para o exílio na Babilónia uma grande parte do povo hebreu, acontecimento imortalizado no Salmo 137 da Bíblia.

“A época da acção não é o mais importante para mim, porque a intolerância de que fala continua a ser totalmente contemporânea”, diz ao PÚBLICO o encenador André Heller-Lopes no intervalo de um dos ensaios. “Neste momento em que existem guerras entre os povos e batalhas religiosas, é uma temática muito mais contemporânea do que em 2011, o ano em que o Teatro Municipal do Rio de Janeiro e o Palácio das Artes de Belo Horizonte me encomendaram uma encenação do Nabucco. Na verdade, comecei a pensar nela aqui em Lisboa, pois nessa época vivia cá devido às anteriores colaborações com o Teatro de São Carlos.” Apesar desta ser uma produção nova, o encenador reconhece que algumas ideias-base dessa época subsistem, nomeadamente o fio condutor baseado no “discurso da intolerância” e algumas questões práticas como a movimentação do coro, que funciona como uma personagem. Mas, de resto, tudo foi feito de novo: cenários, figurinos, desenho de luzes.

André Heller-Lopes salienta a importância de trabalhar com a sua equipa, constituída por Renato Theobaldo (cenografia), Marcelo Marques(figurinos) e Fabio Retti (desenho de luz). “Trabalhamos juntos há dez anos. Admiro muito o Renato Theobaldo, que é sobretudo um grande artista plástico que me tem inspirado muito. Ele usa materiais diferentes. Às vezes um tubo de metal ou um tubo de papel transformam-se em algo extraordinário.” No caso da cenografia de Nabucco, grandes painéis móveis construídos com tubos de papel de tamanhos diferentes, “como se fossem os rolos de escrituras sagradas”, criam figuras que evocam os relevos de Petra. Os jogos de luzes e outras estruturas, como a grade por onde trepam os escravos prisioneiros, formam quadros de grande impacto e poderoso efeito. “O cenógrafo e o figurinista — com as suas recriações estilizadas de trajes de judeus ortodoxos do século XIX e de trajes e jóias da Babilónia —  ajudam-me a criar o que eu chamo um clássico com twist, um jeito de encenar que é ao mesmo tempo o da grande ópera, mas inclui também um outro olhar”, explica Heller-Lopes.

Mais do que as conotações políticas do Nabucco no âmbito da Itália do Risorgimento, interessaram ao encenador  a história pessoal de Verdi e a forma como ele trata as emoções e sentimentos. “Há nesta obra um desejo enorme de salvação, se a ópera não funcionasse [depois dos fracassos anteriores] Verdi provavelmente tinha-se jogado da ponte. De qualquer forma, a questão da unificação de Itália tem de novo a ver com a questão dos povos inimigos: italianos e austríacos, ou seja, com a intolerância.” Heller-Lopes vê o Nabucco  como “uma grande operação de guerra, exposta com muita paixão em grandes cenas e  grandes quadros.” Mas não quis actualizar demasiado a acção. “Podia por exemplo descrever a Abigaille como uma mulher-bomba, mas aí acho que se reduz muito a leitura. Actualizar de mais e colocar a acção em 2013 ou 2026 ia reduzir a imensidão das personagens. Prefiro deixar os cantores trazerem a sua emoção e a sua experiência para a acção. Acima de tudo, esta é uma ópera de vozes.”

Para o maestro Antonio Pirolli, “Nabucco não é apenas a primeira ópera importante de Verdi, a obra com a qual ele se manifesta ao mundo cultural e musical da época": "Foi também um passo importante na história do teatro lírico." Os grandes desafios da sua interpretação “são os de seguir à letra a partitura e os ditames de Verdi e ao mesmo tempo relê-los segundo uma estética própria”. Pirolli recorda que Nabucco é uma ópera escrita na primeira metade do século XIX, que reflecte um gosto específico e o material instrumental que o compositor tinha à disposição. “Hoje temos instrumentos melhores do ponto de vista técnico e músicos mais refinados, conscientes de uma história musical de mais 150 anos desde então. Os músicos da época de Verdi conheciam Verdi e os seus antecessores. Nós já ouvimos e interpretámos tanta música, podemos aperceber-nos de subtilezas que antes talvez não fossem evidentes.”

Contrariando o costume de fazer alguns cortes na partitura, “que vigorou nos anos 50 dos século XX em óperas que eram consideradas demasiado longas”, o maestro e o encenador decidiram apresentar o Nabucco na íntegra nesta produção. “Há uma exigência de reescutar a totalidade, e mesmo com a reintegração de todos os cortes o Nabucco não é assim tão longo”, refere Pirolli. “Claro que esta decisão comporta maiores exigências para os solistas, em especial para Abigaille e Nabucco e mesmo para Zaccaria, cuja cabaletta [secção final virtuosística na estrutura da scena ed ária da ópera oitocentista] é muito difícil, mas os nossos cantores estão à altura.”

Do ponto de vista dramatúrgico, Antonio Pirolli diz que “esta é uma ópera que tem como temática principal o patriotismo, mas onde começam já a entrever-se personagens com uma espessura psicológica forte.”

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