Avistadas em Lisboa: toupeiras gigantes às voltas com Platão

Uma família bizarra habita o palco onde o francês Phillipe Quesne põe em cena uma reflexão sobre o saber, com piscadelas de olho aos gregos e ao universo das fábulas. É mais um capítulo do Alkantara Festival.

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La Nuit des Taupes é mais uma fantasia de Philippe Quesne MARTIN ARGYROGLO

Lá em baixo há toupeiras. Toda uma família de toupeiras gigantes que habita o subsolo, num mundo alegórico, “um bestiário fantástico”, como lhe chama Philippe Quesne. Uma existência subterrânea com tanto de pré-histórica como de pós-apocalíptica, plantada à sombra da Alegoria da Caverna, de Platão. O novo espectáculo do francês Philippe Quesne, La Nuit des Taupes (Welcome to Caveland), estreado em Bruxelas há um mês numa das grandes apostas do Kunstenfestival 2016, e apresentado terça e quarta-feira no Grande Auditório da Culturgest, em Lisboa, cortesia Alkantara Festival, é assumido como uma continuação de Swamp Club, mostrado há um ano em Portugal pelo Teatro Rivoli (Porto). Que por sua vez era já uma continuação de Big Bang (programação Alkantara Festival de 2012), que por sua vez era uma continuação de La Mélancolie des Dragons, que por sua vez era uma continuação de L'Effet de Serge, estes últimos apresentados em 2009 em Lisboa pela Culturgest.

Swamp Club, o capítulo anterior desta saga, foi um dos dez melhores espectáculos teatrais do ano para o Ípsilon, sendo então descrito como “um centro de artes com vista para um pântano – ou uma metáfora operativa, hipnótica como um sonho muito estranho, para podermos tratar desta questão (não tão inverosímil nem tão longínqua assim) da possível extinção da liberdade artística num planeta em crise sistémica (não só financeira)”.

Em La Nuit des Taupes (A Noite das Toupeiras), toda a fantasia pode, afinal, ser também lida como uma réstia de poesia a que Quesne tenta desesperadamente agarrar-se, ainda que escondendo esse desespero sob doses de lirismo e efabulação. Debaixo da terra abriga-se, pois, uma utopia. E se em Swamp Club vingava a ideia de uma arte sob ameaça e os intérpretes desapareciam no final guiados por uma toupeira gigante que os levava para um lugar desconhecido, pois Quesne, confessa o próprio acerca de La Nuit des Taupes, quis agora seguir por esse túnel adentro, à procura de um sítio onde pudesse selar a ameaça do mundo exterior e deixá-la lá fora.

Quesne fala de Platão como referência inevitável para o mundo de presenças e sombras das suas toupeiras, mas também da operação militar que culminou com a morte de Bin Laden num abrigo em Abbotabad, Paquistão. Ou seja, Quesne pensa as grutas como refúgios (permeáveis ou não), “mesmo até do teatro”, esclarece o autor na apresentação da peça. “A Caverna é um lugar de sonho aberto ao fantástico mas também propício a uma reflexão sobre uma parte sombria e misteriosa do humano, com toda as ambiguidades que comporta o facto de se refugiar dentro de um buraco”, explicou à revista Les Inrockuptibles.

A reboque de Platão, diz ainda o autor, permite-se questionar o lugar do saber e mesmo duvidar se serão os humanos suficientemente fiáveis para lhes serem entregues os destinos do mundo. As toupeiras, animais pouco assíduos da superfície, são aqui vias abertas para uma fábula onírica e filosófica.

Quesne, que em 2014 assumiu a direcção do Théâtre Nanterre-Amandiers (encabeçado entre 1982 e 1990 por Patrice Chéreau), é uma das grandes figuras do teatro europeu contemporâneo. Em 2003, fundou a companhia Vivarium Studio, com a qual tem vindo a criar toda esta sequência de espectáculos que agora chega a um novo patamar, bem lá ao fundo.

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