Egyptian Lover: e a batida fez boom!

No final dos anos 1970 Greg Boussard inventou-se enquanto Egyptian Lover. Estava ainda longe de imaginar que, misto irresistível de Tutankamon, Rudolfo Valentino, Prince e George Clinton, se tornaria um nome fulcral do hip hop, versão electro. Tudo explicado em 1983-1988

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Egyptian Lover 1983-1988, colectânea em cd duplo (ou em edição de quatro vinis) chega para contar a história do pinga-amor, rei do electro

No final dos anos 1970, Greg Boussard destacava-se no bairro de Los Angeles em que vivia. “Todos os meus amigos eram gangsters e tinham os seus nomes nas costas dos blusões”. Havia Mr Guns, o tipo que lidava bem com armas. Havia o Mr. No Good, um tipo que não se portava nada bem com as mulheres. Havia Knock You Out, homem que, imaginamos, teria a tendência para usar os punhos mais vezes do que gostariam os que apanhavam com os ditos punhos em cima. E havia Greg Boussard, que recordou esta história numa longa entrevista à Red Bull Music Academy, em Outubro de 2013. “Crescendo no gueto, a primeira coisa em que pensávamos era em sair dele. Portanto, na minha imaginação saía do gueto e transportava-me até qualquer lugar de que me lembrasse. Naquela altura, esse lugar era provavelmente o Egipto”.

Imaginação levada para aquelas paragens, depararam-se-lhe dois nomes de guerra possíveis. Ou seria Egyptian Lover ou Jerusalem Jerk. Greg Boussard tomou a decisão certa. Sabemo-lo nós, sabia-o a futura comunidade hip hop da costa oeste americana onde se formavam Ice-T ou Dr. Dre, sabe-o Chris Manak, ou Peaunut Butter Wolf, fundador da Stones Throw, casa de J Dilla, Dam-Funk, Madlib, Oh No ou Aloe Blacc.

Quando caminhava pelo bairro entre Mr. Guns, Mr. No Good ou Knock You Out, Boussar distinguia-se. Nas suas costas lia-se claramente: Egyptian Lover. Forma de afirmar, explicou na Red Bull Music Academy, “não sou nenhum gangster, mas estou vestido como vocês todos, portanto, não me dêem um enxerto de pancada” – ajudava, refere, o facto de ser um tipo encorpado de 1m85. Quando ainda não fazia ideia do que era um scracth, quando ainda não se tinha deparado com a Roland TR-808, a histórica caixa de ritmo que se tornaria o seu instrumento predilecto, quando não começara a espalhar charme enquanto sedutor supremo sussurrando aos ouvidos de quem dançava na pista de dança, Greg Boussard já estava a caminho. No final dos anos 1970, o reinado do faraó começava a anunciar-se nas ruas de Los Angeles.

Egyptian Lover 1983-1988, colectânea em cd duplo (ou em edição de quatro vinis) agora lançada pela Stones Throw, chega para contar a história do pinga-amor, rei do electro (“na altura chamávamos-lhe apenas hip hop”), que a ascensão do gangsta rap de, por exemplo, os NWA lançaria no esquecimento – mas as vibrações emanadas pelo “faraó ‘freakaólico’ detonado naquela curva no contínuo espaço-tempo conhecido como a sua mente”, como definido de forma feliz em crítica na Pitchfork, continuaram a fazer-se sentir, subterraneamente. É tempo de reencontrarmos em toda a sua glória hedonista este pioneiro hip hop, misto irresistível de Tutankamon, Rudolfo Valentino, Prince e George Clinton – sim, é tão inesperado e tão bom quanto a combinação sugere.

O trono do faraó

Tudo começou por causa de uma rapariga – no caso de Egyptian Lover, não podia ser de outra forma. Em 1981, uma colega falou-lhe de uns tais Kraftwerk, os revolucionários alemães da electrónica. Greg queria impressioná-la e mostrou-se interessado. Quando ela lhe ofereceu Computer World, foi paixão à primeira vista. Dupla paixão – os Kraftwerk são influência determinante no seu trabalho e a antiga colega tornar-se-ai, anos depois, sua mulher. Por esta altura, nesses tempos que parecem hoje tão distantes, Greg Boussard aprimorava os seus dotes de produtor recorrendo ao método mais old-school: as bootlegs que criava eram misturadas directamente num deck de cassetes e as cópias eram depois distribuídas pelos amigos, que faziam novas cópias – e assim sucessivamente. A fama das bootlegs tornou-se tal que não demorou até que Egyptian Lover fosse convidado para se apresentar ao vivo. Quando a oportunidade surgiu, deparou-se com um problema técnico. Um detalhe. Dominava bem a tecla “pause” e “rec” do gravador de cassetes, mas pouco sabia da arte do DJing. Ofereceram-lhe mil dólares pela apresentação e sentiu o chamamento artístico. Problema superado. “Vou aprender”, disse. E aprendeu rápido.

Desde Nova Iorque, os ecos da Sugarhill Gang ou de Grandmaster Flash chegavam com grande impacto a Los Angeles e Egyptian Lover não demoraria a integrar o Uncle Jamm’s Army, a mais famosa crew hip hop californiana. Era então um dos mais respeitados e requisitados DJs da cidade e não surpreendeu que, em 1983, quando foi filmado o primeiro documentário sobre a cena hip hop da Costa Oeste, Breaking & Entering, fosse ele o convidado para assinar a banda sonora. No mesmo ano, mostraria que não só a sua personagem, mas também aquela que se tornaria até aos dias de hoje a sua assinatura sonora, estava plenamente definida. Dial-A-Freak, editada no mesmo ano, é uma espécie de Je t’aime moi non plus do electro, conversa nocturna de gemidos e confissões, com Egyptian Lover e a sua interlocutora a clamar por esse ser, fauno das paixões de antigamente, que era o ‘freak’ das festas de Los Angeles, anos 1980, hip hop a crescer exponencialmente enquanto comunidade e expressão artística. Como é que se faziam as coisas? Rápido, muito rápido. No momento.

No caderno que acompanha Egyptian Lover 1983-1988, o próprio conta como nasceu a canção que abre a colectânea, Egyptian Lover Theme, criada para a banda-sonora de Breaking & Entering: “Enchi o meu [Roland] 808 de batidas para dançar e sobre os quais o Ice T rappar. Depois fomos para o estúdio. Eu e o The Glove fizemos scratch sobre as faixas. Gravei toda a banda-sonora durante o dia e, mais tarde na noite, passei-a enquanto DJ. Eram tempos de diversão, tempo de sermos super criativos”.

Naquele período nos anos 1980, Egyptian Lover reinou verdadeiramente. Respeitadíssimo em Los Angeles, era também admirado bem para além dela, dentro e fora da comunidade – os Run DMC mostravam o seu apreço quando visitavam Los Angeles, Prince tocava a sua música para se inspirar, Michael Jackson treinava passos de dança ao som dos seus singles, produtores na Alemanha tentavam pôr as mãos nas edições que, ontem como hoje, fazia de forma independente, controlando todo o processo. No “trono” instalado no topo de uma pirâmide construída com 32 colunas – assim se apresentava com a Uncle Jamm’s Army -, com o Roland 808 e os pratos perante si, Egyptian Lover dominava a pista de dança: sedutor como Barry White, provocador como Prince, futurista como os Kraftwerk, manipulador dos pratos como Grandmaster Flash – What is a DJ if he can’t scratch?, perguntava ele em 1984.

A batida mecânica da 808, com as suas tarolas secas e os baixos profundos, uniam-se aos sintetizadores que eram tanto evolução do P-funk dos Parliament quando modernidade aprendida com o Prince de Controversy ou 1999. Fiel à sua “persona”, recheava as canções, como o seu single assinatura, o clássico Egypt Egypt (um sucesso monstruoso, com quatro milhões de cópias vendidas nos Estados Unidos), de melodias que nos transportavam directamente para um país dos faraós imaginário – em “My house on the Nile” descrevia-nos mesmo as delícias que nele encontraríamos.

On the Nile, o primeiro álbum, editado em 1984, tornou-se, apesar do sucesso comercial modesto, um clássico inescapável. Tal como o eram, canção a canção, edição 12” após 12”, cada um dos 22 temas incluídos em Egyptian Lover 1983-88. Da robótica Computer love à trepidante Girls, da nada menos que perfeita Freak-A-Holic à canção cujo título resume tudo, And my beat goes boom, Egyptian Lover, o homem que ajudou a moldar esse presente apontando ao futuro que era o hip hop criou uma fantasia irresistível para si e os corpos de quem o ouvia.

A ascensão de um hip hop que fez do realismo das ruas a sua principal inspiração (chamaram-lhe gangsta-rap), tirou-lhe o protagonismo vivido em grande parte da década de 1980 – curiosamente, num dos grandes protagonistas dessa mudança, os N.W.A., encontrávamos Dr. Dre, Ice-T e Arabian Prince, todos eles colaboradores e/ou aprendizes de Egyptian Lover. Independente como sempre fora, Greg Boussard continuou a espalhar carnalidade electro pelos Estados Unidos, escondido do olhar das multidões. Até 1998, manteve também uma produção discográfica regular. Com a implantação da internet, os pequenos núcleos de admiradores começaram a espalhar a palavra. A partir de 2004, começou a viajar regularmente para digressões na Europa. Em 2008, junta-se a M.I.A. para algumas datas da digressão People Vs. Money da britânica. Nos anos seguintes, começou a trabalhar num novo álbum, fiel à Roland 808 e aos pratos de vinil – considera que as novas tecnologias digitais, pelo que vê nelas de artificial, pela sua, diz, reduzida qualidade sonora, são incapazes de produzir o mesmo efeito.

Ainda imerso na fantasia que criou para si quando calcorreava as ruas de Los Angeles, no final dos anos 1970, é um homem de olhos postos no futuro. Em Outubro de 2015 editou seu trabalho mais recente, o oitavo álbum de originais. Título: 1984. A batida voltou a fazer “boom”. E faz “boom” novamente, decididamente, neste preciso momento em que 1983-1988 nos conta a toda história que ficou para trás.

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