Liceu de Alexandre Herculano: a história do Porto vive ali

O histórico liceu, que recebeu alunos como Belmiro de Azevedo, Manuel Sobrinho Simões, Rui Vilar ou Manuel Alegre está num estado penoso de degradação

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Fernando Veludo/nfactos
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Quando chegaram as raparigas foi um alvoroço. Até aí, elas eram uma presença constante, no liceu feminino ali ao lado, o Rainha Santa Isabel, mas o Liceu de Alexandre Herculano era o espaço exclusivo dos rapazes. “As meninas eram só para ver, sempre à distância”, recorda o arquitecto Álvaro Siza, que fez o 6.º ano (o equivalente ao 11.º) no centenário liceu do Porto, em 1948. Eram outros tempos. O Alexandre, um dos dois grandes liceus da cidade durante a primeira metade do século XX, era a casa privilegiada de uma certa elite, porque prosseguir os estudos secundários não era para todos. A exigência dos professores e o belo espaço desenhado pelo arquitecto Marques da Silva são o mote comum nas memórias de quem por lá passou nessa altura. E custa a todos acreditar o estado a que o edifício hoje chegou.

Maria do Carmo Castelo Branco Sequeira foi uma das cinco alunas que, subitamente, a meio da década de 50, ingressaram no Alexandre Herculano. Não foi o primeiro grupo, diz, mas o segundo. As cinco tinham escolhido Direito, e o Rainha não oferecia essa “alínea”. A professora jubilada da Universidade Fernando Pessoa, e trineta do escritor Camilo Castelo Branco, viu-se assim na turma de Rui Vilar, hoje administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, que estudou no liceu portuense entre 1949 e 1956. “Integrámo-nos muito bem, era uma belíssima turma, com óptimos professores. E ficávamos muitas vezes a discutir nos intervalos, com os defensores do Eça de Queirós de um lado e os do Camilo Castelo Branco do outro. Eu era da família do Camilo, por isso defendia-o”, diz a antiga aluna.

O despique levou-os a ler todas as obras dos dois autores e nem a constante vigília de funcionários e professores, para que o contacto entre rapazes e raparigas fosse mínimo, impedia as tertúlias que se geravam nos amplos corredores cobertos do liceu. “Depois do liceu, acabei por mudar para Letras e fiz o mestrado e o doutoramento sobre Eça de Queirós, mas regressei a Camilo, entretanto”, conta Maria do Carmo, sorridente.

A influência daqueles dias intensos do liceu moldou os interesses da jovem Maria do Carmo, que ainda hoje lamenta não ter podido participar na tertúlia literária que o colega Rui Vilar e outros companheiros da turma criaram, a Caminho. “Mas era à noite, nós não estávamos autorizadas a ir”, diz ela.

Rui Vilar recorda os debates Eça-Camilo como um período de uma “certa efervescência cultural”, que não apaga, contudo, a impressão deixada pelo acontecimento mais prosaico de o Alexandro Herculano já não ser só uma escola de rapazes. “Com a entrada das meninas no liceu houve um inevitável alvoroço e o facto fez partir alguns corações. O reitor criou um recreio só para elas, junto da entrada, com um jardim, que foi logo crismado por nós de ‘Gineceu’. E as meninas eram obrigadas a usar batas, pareciam técnicas de laboratório”, conta o administrador da Gulbenkian. O jardim podia ser um bonito espaço, mas os rapazes tinham outro encanto. “Elas preferiam ficar na sala de aulas ou nos corredores e isso propiciava muita conversa”, diz.

Obras urgentes
É preciso conhecer os corredores do Alexandre Herculano para perceber como eles convidam à permanência. Ainda hoje os alunos se deixam ficar por ali, mas o director da escola, Manuel Lima, encontra razões diferentes das de há 60 anos, para essa escolha. “Não há um espaço comum onde eles possam estar”. Já podia haver, se o projecto de reabilitação do edifício classificado como imóvel de interesse público, tivesse avançado. Os arquitectos Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez têm-no pronto. “Ele foi amplamente discutido com toda a comunidade e mereceu a concordância de todos”, diz o professor.

Em 2012, quando o edifício já gritava por obras, ainda existia a expectativa que as verbas necessárias à sua requalificação pudessem chegar em 2014. E eram precisos 15,6 milhões de euros, para dar forma a um trabalho que o arquitecto Alexandre Alves Costa descrevia então como de “compromisso”, e apostado em permanecer fiel ao traçado de Marques da Silva, “o verdadeiro autor deste projecto”. Além do restauro completo do edifício, a intervenção previa uma nova zona desportiva; a transformação do antigo ginásio em espaço polivalente, com cafetaria e refeitório; e a construção de uma nova biblioteca, no local hoje ocupado pelo museu de história natural da escola, que seria transferido para outro local.

O Liceu de Alexandre Herculano foi criado em 1906, ainda com o nome de Liceu Central da 1.ª zona. O nome actual ser-lhe-ia atribuído dois anos depois, mas o edifício imponente que hoje domina a Rua Camilo só começou a ser construído em 1916, tendo ficado completamente concluído e com todos os serviços a funcionar em 1934. Na fachada, inscrita a pedra, uma frase do patrono recebe os alunos – “A instrução tem por alvo o benefício do cidadão e a utilidade da República” – e dentro do edifício há painéis de azulejos nos corredores largos de janelas altas, que deixam ver os pátios grandes. Por cima de algumas salas ainda há placas antigas que identificam o “Anfiteatro de Química I” ou o “Laboratório de Química I”. Há um belo ginásio de chão em madeira, uma piscina e duas bibliotecas. Está lá tudo, mas está longe de estar no seu melhor.

O Laboratório de Química I está trancado à chave, porque o chão abateu e o buraco não foi remendado. No ginásio, um enorme plástico atravessa todo o tecto, para impedir que a chuva caia no soalho. Caíram pedaços de tecto, há manchas de humidade por todo o lado, e há cadeados em algumas alas onde, simplesmente, não vale a pena arriscar entrar, tal é a precariedade de escadas e tectos. Até um dos pátios teve que ser fechado, porque um plátano caiu durante uma tempestade e ainda não foi possível fazer as reparações necessárias. Quanto ao parque de estacionamento, uma parte abateu sobre um café, numa das últimas tempestades, não ferindo ninguém por sorte.

"O grande salto" da vida
Estas são as histórias que os alunos de hoje poderão contar e que estão à distância de uma vida das memórias dos que conheceram o liceu no seu auge. “Tenho uma enorme ternura pelo Alexandre Herculano”, diz o investigador e director do IPATIMUP, Manuel Sobrinho Simões. Diz que chegou lá, provavelmente, “ainda de calções”, com nove anos, em 1956, e que o pai o largou à porta. “Apanhei um susto para a vida. Estava com vontade de chorar, achei tudo enorme”, conta. Ainda hoje, mais do que a passagem para a faculdade, a ida para o liceu aparece-lhe como “o grande salto” da sua vida. Foi lá que descobriu que “não queria ser cirurgião”. Os laboratórios deixaram-no “maravilhado”, mas a dissecação das rãs, nem por isso. E foi nos corredores que um colega lhe comunicou, e aos outros amigos, que descobrira por onde nasciam os bebés. “Era pelo rabo”, diz ele, à gargalhada, contando que foi preciso o pai esclarecê-lo sobre a verdade, quando chegou a casa e partilhou, orgulhoso, o conhecimento recém-adquirido.

Diz que só tem boas recordações, mas entre muitos risos, assume que, vá lá, também é capaz de recordar uma má experiência no liceu. “Detestava o canto coral. Queriam que todos os meninos entrassem e aquilo era horrível, porque eu não tinha ouvido nenhum nem voz nenhuma. O problema é que o professor achava que eu fazia de propósito, dava-me má nota, mas obrigava-me a cantar. Era uma humilhação. Porque no recreio, eu jogava mal à bola, mas esforçava-me e as pessoas toleravam-me. No coro sofri grandes humilhações.”

Jogar à bola é mesmo a memória mais marcante que Álvaro Siza guardou da sua passagem pelo liceu portuense. Foi para lá apenas um ano, porque só o Herculano tinha o curso que dava acesso à Faculdade de Belas-Artes, mas o prémio Pritzker tinha apenas 15 anos, ainda não sonhava em ser arquitecto – queria ser escultor – e a beleza do espaço desenhado por Marques da Silva não o fascinava enquanto obra. O que não significa que não apreciasse a criação. “Tinha instalações magníficas e o edifício estava muito bem organizado. Aqueles pátios, o sol a entrar, as galerias muito bem direccionadas, tudo contribuía para as pessoas se sentirem ali bem.”, diz. O arquitecto diz que é “inaceitável o estado a que o edifício chegou”.

“Inaceitável” é também o termo utilizado por Rui Vilar, e o empresário Belmiro de Azevedo diz que ficou “preocupado” com o que leu sobre o estado de degradação da escola que também foi a sua. “Tenho que visitar a instituição, falar com os meus colegas, perceber o que se pode fazer. Mas, em primeira mão, a responsabilidade é do Estado”, diz.

Em 2006, aquando da comemoração dos cem anos da criação do liceu, o fundador da Sonae (proprietária do Público) participou nas festividades, dizendo então que foi no liceu que cimentou a ética de “tolerância zero” e ganhou o gosto pela Matemática. António Mota, fundador da Mota-Engil também desenvolveu ali o gosto pela mesma disciplina, depois de ter chegado ao Porto vindo de Amarante. “Estou muito agradecido pelo que o Liceu de Alexandre Herculano fez por mim”, diz, mesmo que a experiência do canto coral também não fosse muito entusiasmante: “A minha professora dizia-me ‘não tens voz de tenor, tens voz de terror, vais lá para o fim’”, recorda, risonho.

A marca dos professores
Estas memórias de momentos difíceis são hoje encaradas com bonomia. Todos recordam, sobretudo, os excelentes e exigentes professores que tiveram. O professor João Rodrigues Gaspar da Costa, de Latim, que Pacheco Pereira descreveu no PÚBLICO como “universalmente temido pelo modo destemperado com que caía em cima de qualquer infeliz que não soubesse as declinações”. O professor Cruz Malpique (que surge na boca de quase todos), de Filosofia, que o mesmo antigo aluno recorda como “um impressionista, [que] não sabia muito de filosofia, mas transmitia o gosto pela filosofia e pelo pensar e isso é que caracteriza um professor”. O professor António Cobeira, amigo dos poetas Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, que – como recorda Rui Vilar – gostava de presentear os alunos com um exercício, com ratoeira. “Apresentava-nos três traduções do soneto ‘How I love thee’, do livro ‘Sonets from the Portuguese’, de Elizabeth Barrett Browning, para que escolhêssemos o melhor”. As traduções eram de Manuel Bandeira, Fidelino de Figueiredo e do próprio António Cobeira. E os alunos não se enganavam, escolhendo uma das outras? “Não, porque a melhor tradução era a dele. Era mesmo muito boa”, diz Rui Vilar.

O professor António Cobeira foi também uma figura marcante na vida do poeta Manuel Alegre, outro dos antigos alunos do Liceu de Alexandre Herculano. No livro “O miúdo que pregava pregos numa tábua”, o histórico socialista recorda como António Cobeira, seu professor de Francês, lhe deu com uma cana na cabeça, mas também como o apresentou ao trabalho de Pessoa, Sá-Carneiro e à revista Orpheu. Arnaldo Trindade, o fundador da editora discográfica Orfeu, dizia, em 2013, numa entrevista ao Diário de Notícias que o seu gosto pela poesia nasceu no liceu portuense. “O responsável por isso foi um professor que tive no terceiro, quarto e quinto anos, o Dr. António Cobeira, que pertenceu à Orpheu de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Em vez de nos pôr a dividir orações, punha-nos a ler Pessoa, que ninguém conhecia na altura”, dizia. O responsável pela edição dos discos de Zeca Afonso considerava-se um “privilegiado”, por ter tido como professores no liceu também Óscar Lopes ou Alberto Uva.

De António Cobeira, Maria do Carmo recorda com um sorriso como as suas aulas eram sempre uma incógnita. "O sumário da aula podia dizer Rodrigues Lobo, mas ele derivava sei lá para quê! Chegávamos ao fim da aula e estávamos no simbolismo francês. Ou então o sumário dizia Eça de Queirós e acabávamos a falar de Rodrigues Lobo”. A antiga aluna recorda também o reitor Francisco de Sena Esteves, que vivia na escola, na “casa do reitor”, e de vez em quando entrava nas salas, para assistir às aulas.

Eram tempos de aprendizagem, mas eram também tempos de ditadura. Rui Vilar, citado pelo PÚBLICO em 2006, nas celebrações do centenário do liceu, recordava as frases-símbolo do espírito salazarista, espalhadas pelas paredes do liceu: “No barulho ninguém se entende, é por isso que na revolução ninguém se respeita”. Ainda assim, os antigos alunos que falaram ao PÚBLICO recordam esses tempos como de poucas restrições aos professores, mesmo “os mais esquerdistas”, que eram conhecidos. Rui Vilar diz que foi no liceu que viu pela primeira vez os filmes do neo-realismo italiano, como Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica, ou várias obras de Jacques Tati. O jornal escolar Prelúdio, fundado por Manuel Alegre, José Augusto Seabra e José Miguel Bial da Silva, não teve vida longa, mas foi sendo publicado, com algumas interrupções (ainda que artigos mais “ousados” para a época tivessem dado a origem a algumas chamada ao gabinete do reitor, como aconteceu a Pacheco Pereira, que chegou a escrever para o periódico). Ao PÚBLICO, Manuel Alegre diz recordar-se de ter tido "uma chatice" com um professor de Religião e Moral, que considerou o poema com que ele vencera os jogos florais da escola "demasiado ousado". Mas o caso mais grave, que levou à sua expulsão da sala e a um castigo foi outro e com outro professor de Religião e Moral. "Ele começou a dizer mal do Afonso Costa, que tinha sido amigo do meu avô materno. E eu disse que o Afonso Costa era um grande homem, gerando ali um sarilho bastante grande", diz Alegre, que tem do Alexandre Herculano, para onde entrou em 1950, a ideia de ser "um bom liceu, do ponto de vista do ensino e do próprio edifício". "Faz parte da História do Porto", defende.

Esperança vã
E, entretanto, o que aconteceu? O tempo passou e o edifício envelheceu. O mesmo aconteceu aos portuenses, que seguindo a tendência nacional, têm cada vez menos filhos. Quando o actual director do Herculano ali estudou, o corpo estudantil chegava aos 4000 alunos. Hoje são cerca de 900. Os problemas de degradação estavam identificados e pensava-se na reparação. Chegou a avançar-se com um plano tecnológico para a escola (as calhas por onde passariam os cabos foram instaladas em alguns locais, mas as ligações nunca foram feitas), mas o processo parou quando chegou a notícia que o Liceu de Alexandre Herculano seria integrado na 3.ª fase do Parque Escolar, o grande programa de reabilitação das escolas lançado pela ministra da Educação de José Sócrates, Maria de Lurdes Rodrigues. Manuel Lima diz que ainda assinou o contrato, em 2011, mas, então, o Governo caiu. O governo de Pedro Passos Coelho e do ministro Nuno Crato passou sem que o Herculano visse qualquer obra.

O director diz que todo o universo escolar do liceu tem esperado “pacientemente”. Os alunos e professores esforçam-se, participam em actividades extra-escolares e até ganham prémios. Nos “rankings” – “que valem o que valem”, diz – fica a meio da tabela das escolas do Porto, “à frente de algumas que foram intervencionadas pela Parque Escolar”, argumenta. Mas a verdade é que a falta de aquecimento torna impossível assistir às aulas sem agasalhos no Inverno. E de cada vez que há intempérie, o professor diz que se “angustia”, porque já sabe que o sistema (internet, comunicações) vai colapsar. Há salas de aula onde cheira a mofo e as manchas escuras no tecto fazem pensar em fungos pouco saudáveis.

Agora, foi lançada uma petição exigindo que se “salve” o liceu e o PS promete levar o caso ao Parlamento. O Bloco de Esquerda já prometera o mesmo. Manuel Alegre já assinou a petição, por considerar "imperativa a reabilitação do liceu, pela sua importância na história do Porto e do ensino em Portugal". Manuel Lima diz que não perdeu a esperança. Vai convidar o Presidente da República a visitar o Alexandre Herculano, e o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, a ir lá abrir o novo ano lectivo. Tudo o que queria, era que o arranque das obras o acompanhasse. 

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