Cameron segue os passos de Wilson, mas vitória de 1975 é difícil de repetir

Há 41 anos, o primeiro-ministro trabalhista usou referendo para superar divisões no partido. A seu favor, tinha o consenso nacional e uma realidade muito distante daquela com que se debate Cameron.

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Acérrima defensora do Mercado Comum, Margaret Thatcher fez campanha pelo "sim" à CEE Brian Smith/Reuters (arquivo)
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A pergunta no boletim para o referendo de dia 23 é muito semelhante à que foi colocada aos eleitores em 1975 Odd Andersen/AFP

As semelhanças são tantas que é impossível não ver nas decisões de David Cameron uma reencenação do guião que Harold Wilson escreveu em 1975. Pressionado por divisões no seu partido e amarrado a uma promessa eleitoral, o então primeiro-ministro trabalhista convocou os britânicos para decidirem se queriam continuar no que era então a Comunidade Económica Europeia (CEE) – a resposta foi um “sim” inequívoco que permitiu a Londres participar, ainda que quase sempre com reservas e excepções, num inédito processo de integração europeia. Mas a realidade com que o actual primeiro-ministro lida não podia ser mais oposta à que deu o triunfo ao seu antecessor.

Foi a 5 de Junho, faz amanhã 41 anos, que os britânicos participaram pela primeira vez num referendo nacional – Margaret Thatcher, a jovem líder dos conservadores, chamou-lhe “um instrumento de ditadores e demagogos”, vindo de um Governo “incapaz de tomar decisões”.

Ela, que década e meia mais tarde selaria o fim do seu reinado em Downing Street com o célebre discurso do “não, não e não” à Europa, era acérrima defensora do Mercado Comum a que o Reino Unido pertencia há apenas dois anos – são dessa campanha as fotografias em que surge, sorridente, com um pullover que tinha tricotadas as bandeiras dos países-membros. Com ela tinha a totalidade do Partido Conservador, numa unanimidade que se estendia aos liberais, mas também às empresas, ao sector financeiro e – por muito que inacreditável que aos olhos da actualidade – dos jornais de então.

As divisões estavam no outro campo político, no Labour acabado de regressar ao poder. De um lado Wilson, apoiado por uma maioria de ministros e uma nova geração de dirigentes pró-europeus. Do outro, os sindicatos que suportam o partido, grande parte dos militantes e mais de metade dos deputados. Para eles a união aduaneira e as políticas comuns da CEE eram uma ameaça ao emprego e ao sector produtivo britânico, a braços com uma crise profunda que fazia do país “o homem doente” da Europa.

Um referendo “pode ser o bote salva-vidas para o qual todo o partido terá um dia de saltar”, previa, ainda em 1970, o então ministro Jim Callaghan perante a fractura que as negociações para a entrada do país na CEE provocavam no Labour. A adesão aconteceu durante o mandato do conservador Edward Heath, em 1973, mas quando o líder trabalhista regressou no ano seguinte a Downing Street trazia na mala o compromisso de “renegociar os termos” da presença britânica na CEE e realizar depois um referendo – a exacta promessa que Cameron repetiria em Janeiro de 2013, sob pressão dos eurocépticos do seu partido.

Renegociações e ultimato

Wilson “percebeu que a única forma de obter uma vitória decisiva sobre o sector anti-mercado no Labour era ultrapassar o partido e dirigir-se directamente ao país”, escreveu o antigo embaixador britânico Stephen Hall na sua História Oficial do Reino Unido na Comunidade Europeia, dando voz à mesma lógica que levou o actual primeiro-ministro a arriscar tudo no referendo de 23 de Junho.

Tal como Cameron, Wilson prometeu fazer os “melhores esforços” para conseguir uma mudança “fundamental” nas condições de permanência e também ele vinha munido de um ultimato. “Se a renegociação não for bem-sucedida, deixamos de nos sentir vinculados às obrigações do Tratado [de Roma] e iremos explicar ao povo britânico as razões por que consideramos inaceitáveis os novos termos”, lia-se no programa dos trabalhistas às legislativas de Outubro de 1974.

Mas os resultados das negociações foram ainda mais magros do que os conseguidos por Cameron em Fevereiro. Das sete exigências que apresentou, incluindo uma mudança profunda na Política Agrícola Comum (PAC), apenas com duas foram parcialmente satisfeitas – a criação de um mecanismo que corrigisse a contribuição desproporcionada do país para o orçamento comunitário, que nunca foi posto em prática, e taxas mais favoráveis para a importação da manteiga da Nova Zelândia.

Wilson não precisou de trunfos para ter o apoio da oposição, mas sem eles tornou-se ainda mais difícil convencer a ala esquerda do partido. Quando, em Março, o Governo adoptou uma posição oficial a favor da permanência, sete dos 23 ministros votaram contra. No mês seguinte, numa muito tensa convenção, o Partido Trabalhista votou contra a permanência por uma maioria de dois terços.

O que se seguiu foi uma campanha como o Reino Unido nunca tinha visto. Para salvar o Governo, Wilson (tal como Cameron) libertou os ministros eurocépticos do princípio de responsabilidade colectiva e quatro deles, encabeçados por Tony Benn, lideraram a campanha pelo “não”. Com a máquina do Labour obrigada a manter a neutralidade, o seu lugar foi ocupado por grupos locais, contra e a favor da CEE.

Campanha desigual

Mas se o debate foi aceso e a mobilização inédita, também nunca houve dúvidas sobre para que lado pendia a balança. Num dos pratos estavam os líderes dos três maiores partidos (num tempo em que a credibilidade da política era outra), os grandes empregadores, a Igreja Anglicana, as celebridades. Não havia limites ao financiamento e a campanha pelo “sim” angariou dez vezes mais dinheiro do que os rivais. No outro prato, a figura mais reputada era Tony Benn – o ministro da Indústria a quem jornais da época vilipendiaram incessantemente – e os sindicatos, que apesar da grande força que ainda reuniam, tinham liderado uma dura campanha de greves que ameaçara o país de paralisia.

Em 2016, David Cameron não conta com nenhuma destas unanimidades. Mas o que mais distancia a campanha de 1975 da actual são as perspectivas com que os britânicos confrontavam. Há 41 anos, “muito poucos eleitores poderiam estar optimistas em relação à capacidade do Reino Unido para seguir o seu caminho sozinho”, recorda o antigo ministro irlandês Dick Roche, num artigo para o site EurActiv. A economia que hoje atrai milhares de trabalhadores de toda a União Europeia “estava em turbulência, a inflação atingia os dois dígitos […] o PIB caía a pique, os impostos eram asfixiantes e o caos nas relações laborais estavam na ordem do dia”. “A Europa, por contraste, parecia a terra prometida”, sublinha.  

Para a elite política e boa parte dos eleitores, a CEE representava uma promessa de prosperidade, mas também “uma filosofia, um compromisso, uma visão do consenso internacional no pós-guerra”, recordou a BBC no 40º aniversário do referendo. Com a II Guerra Mundial fresca na memória dos britânicos e a Cortina de Ferro ainda em pé, o projecto europeu, hoje em crise, estava associado à paz no continente, por muito que as ideias de integração (que só nos anos seguintes ganharam forma) colocassem Londres de pé atrás.

A 5 de Junho, 67,2% dos britânicos aprovaram a permanência e Wilson anunciou, exultante, que “14 anos de debate nacional” tinham sido encerrados. Mas o debate no Labour não morreu – em 1981 a facção mais pró-europeia abandonaria o partido para formar o SDP – e, quando finalmente foi ultrapassado, o eurocepticismo tinha já germinado nos conservadores, numa vertigem que acabaria por arrastar Cameron para o novo referendo.

“Não há certezas de que ele seja capaz de reencenar a actuação de Wilson em 1975. E as bandas de tributo raramente são tão bem-sucedidas como aquelas que pretendem imitar, ainda que por vezes consigam satisfazer as audiências”, avisa Roche. “Nas outras 27 capitais, cruzam-se os dedos para que esta seja uma dessas ocasiões.”

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