Muhammad Ali tinha a Marcha de Washington nos dois punhos

Nenhum outro atleta teve uma vida política tão apaixonada, complexa e transformadora como Ali. A sua luta contra a repressão e o racismo elevou a sua voz aos patamares de Martin Luther King e Nelson Mandela.

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Ali foi afastado dos ringues por se recusar combater no Vietname. AFP

O génio de Muhammad Ali operava fora dos parâmetros tradicionais. Nunca se interessou pelos estudos, tinha dificuldades em ler um livro e repetiu um ano do liceu. O seu teste de QI para o exército foi tão baixo que Ali foi considerado inapto para combater no Vietname. Mas ao fim de mais de uma década de guerra, os Estados Unidos estavam desesperados por novos recrutas e baixaram os critérios de elegibilidade no serviço militar. Em Fevereiro de 1966, o campeão mundial de pesos-pesados tornou-se apto para ir para a guerra. Quando soube da notícia pelos jornalistas que foram à sua procura em Miami, Ali lançou uma frase que se tornaria célebre: “Não tenho nada contra esses vietcongues.”

Foi uma enormidade, como tudo na vida de Muhammad Ali. As suas declarações chegaram às primeiras páginas dos jornais de todo o país. Não foi tanto pelo facto de um homem negro recentemente convertido a muçulmano se ter recusado a combater no Vietname, mas pela ideia de que alguém tão célebre podia fazê-lo num momento em que a maioria dos americanos apoiava a guerra. O que se tornou ainda mais surpreendente foi Ali justificar-se com os mesmos argumentos da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos segregados. “Matá-los por quê? Nunca me chamaram preto [nigger], nunca me lincharam, nunca atiçaram os cães contra mim, nunca me roubaram a nacionalidade, ou violaram e mataram a minha mãe e pai.”

Ali sofreu com a sua decisão. Por causa dela perdeu o título mundial e foi impedido de combater por três anos. Tudo isto no seu melhor momento de forma, quando podia esperar receber milhões de dólares. Ali recusou alistar-se mesmo quando o exército lhe ofereceu um posto em que não teria de combater. Um tribunal condenou-o a cinco anos de prisão, mas Ali recorreu e aguardou o desfecho do seu processo em liberdade. “O verdadeiro inimigo da minha gente está aqui. Não vou desgraçar a minha religião, a minha gente ou eu próprio tornando-me numa ferramenta para escravizar aqueles que estão a combater pela sua própria justiça, liberdade e igualdade. Se eu soubesse que a guerra traria liberdade e igualdade aos 22 milhões da minha gente não teriam de me recrutar. Juntar-me-ia amanhã. Não perco nada por respeitar as minhas convicções. Vou para a cadeia. E então? Estamos presos há 400 anos.”

Esta não era a sua primeira batalha política. Ali já se tornara um ícone da luta pelo fim da segregação e pelos direitos civis quando se converteu ao Islão e abandonou o seu “nome de escravo”, Cassius Clay, mesmo que a maioria dos jornais e alguns dos seus rivais se recusassem a tratá-lo por Muhammad Ali. Mas a oposição à frente no Vietname elevou a sua importância política para um patamar diferente. Ali foi a primeira figura pública americana a associar o Vietname à luta pelo fim da segregação e direitos civis e naqueles três anos discursou em universidades por todo o país sobre a ideia de que também a ordem política mundial— e não só os Estados Unidos — escondia a raiz racista de um mundo dominado pelo homem branco. Marthin Luther King só o fez um ano depois, em 1967, e mesmo assim teve de agir contra protestos de jornalistas e dos seus próprios conselheiros. Quando o justificou aos repórteres, Luther King não citou um qualquer pensador político. “Como Muhammad Ali diz, somos todos — negros e castanhos e pobres — vítimas do mesmo sistema de repressão.”

O processo de Ali chegou até ao Supremo Tribunal, que lhe deu razão e o confirmou como objector de consciência. Quando regressou aos ringues, em 1970, já o fez como uma figura emblemática não só na luta pelos direitos civis dos negros na América, mas também como uma voz importante pelo fim do colonialismo e imperialismo. "A Marcha de Washington em dois punhos", chamaram-lhe quando recebeu o prémio Martin Luther King.  Ali olhava até criticamente para o seu próprio desporto. “Somos como dois escravos no ringue. Os patrões arranjam dois grandes escravos pretos e deixam-nos lutar enquanto apostam: ‘o meu escravo consegue desancar o teu escravo’. É isto que vejo quando vejo dois homens negros lutarem”, disse em 1970. “Que atleta moderno, principalmente no nível de Ali, fala com tanta complexidade, ambiguidade ou dedicação?”, questiona-se David Remnick na New Yorker.

O activismo político de Muhammad Ali não acabou com a sua carreira. Quando uma onda de islamofobia se abateu sobre os Estados Unidos depois dos atentados do 11 de Setembro, Ali começou uma discreta campanha em que defendia a imagem do Islão como uma religião de paz e igualdade. O palco da sua luta política, moldado durante muitos anos pela sua infância no Sul racista americano, atingiu uma escala global. A sua última grande intervenção aconteceu no final do último ano, quando Donald Trump, o agora candidato republicano à Casa Branca, prometeu proibir a entrada de muçulmanos no país. "Falando como alguém que nunca foi acusado de ser politicamente correcto, acredito que os nossos líderes políticos devem usar as suas posições para melhorar o entendimento sobre a religião do islão e deixar claro que alguns assassinos desorientados perverteram a opinião pública sobre o que é na verdade o islão."

Como escreve este sábado Barack Obama: “Muhammad Ali abalou o mundo. E o mundo ficou melhor por causa disso. Estamos todos melhores por causa disso.”

 

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