Público português completamente rendido a Benjamin Clementine

Foi um concerto de emoções mistas. Não arrebatou, como aconteceu, por exemplo, em Dezembro passado, no mesmo Coliseu. Mas foi mais uma magnífica demonstração de talento de um músico e cantor singular.

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Benjamin Clementine no Coliseu de Lisboa esta quarta-feira Miguel Manso
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Benjamin Clementine como habitualmente, descalço, casaco comprido, cabeleira afro, mantendo-se na ponta do banco em frente ao piano, porte aristocrático Miguel Manso
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Miguel Manso
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Em menos de um ano o músico inglês – de coração francês – Benjamin Clementine actuou em Portugal várias vezes. Fez festivais, uma minidigressão e, agora, regressou para se apresentar em Lisboa, Porto e Coimbra. Tornou-se claramente num fenómeno de culto.

Ainda bem, porque o seu talento é único. Por outro lado, essa exposição, principalmente para quem lançou apenas um álbum (At Least for Now) tem custos. O carisma, a forma de estar, a forma desarmante como utiliza a voz ou a simplicidade com que toca o piano causam um impacto tremendo quando se contacta com ele pela primeira vez em palco.

Essa experiência de maravilhamento até se pode repetir – aconteceu connosco, que já o vimos cinco vezes –, mas não é muito fácil de acontecer. Não que os seus concertos sejam semelhantes. Não o são. Até as formações com que se mostra em palco vão mudando – desta vez apresentou-se com baterista e uma miniorquestra de cordas de cinco instrumentistas, quatro delas portuguesas, como acontece quase sempre nestes casos.

Foi por isso um concerto de emoções mistas. Não arrebatou, como aconteceu, por exemplo, em Dezembro passado, no mesmo local. Mas foi mais uma magnífica demonstração de talento de um músico e cantor singular e também, porque não, de afecto por parte do público. Muitas vezes ultrapassando o limite do que seria desejável (interrompendo-o em alturas em que nitidamente seria aconselhável mais recolhimento e utilizando até à náusea o flash das câmaras de telemóveis quando era a penumbra que deveria prevalecer), mas desde o início que se percebeu que essa iria ser uma luta que não valia a pena ser travada.

O próprio Clementine percebeu-o. O público estava rendido desde o início. E ele fez por desfrutar disso, o que é mais do que legítimo. No espaço de pouco mais de um ano a forma como interage com a assistência transformou-se. Antes parecia metido consigo próprio, apesar de se lhe perceber ironia. Agora provoca gargalhadas quando tenta falar em português. Tenta responder com bonomia às provocações provindas da plateia. Aceita uma bandeira portuguesa que coloca ao pescoço. Cria uma divertida versão de Seu Jorge mais ruminada que cantada. Desfruta do facto de a sua arte ter impacto junto do grande público.

Isto não significa menos solenidade ou comoção primordial em muitos momentos – no final de algumas canções mais autobiográficas percebe-se que fica exausto do mergulho interior que a sua interpretação representa. Às vezes fica sozinho ao piano, acariciando as notas com nitidez. Outras vezes há o contrabalançar rítmico do baterista e as notas de piano parecem vogar em cascata. E existem  também as orquestrações subtis introduzidas pelas cordas. O foco é, claro, aquela voz sobrenatural, de uma expressividade monumental, umas vezes pianíssimo, outras exuberante, alongando  as possibilidades vocais até ao limite.

Como seria de esperar, esgotou praticamente as canções do álbum de estreia, com Nemesis, Condolence, London, Adious ou Cornerstone recebidas em júbilo. Mas não se limitou ao passado recente, apresentando também meia dúzia de temas novos. Quem imagina que poderá vir a domesticar a sua música desengane-se. Pelo que se ouviu, o contrário é mais provável. Os arranjos e os ritmos das novas canções parecem mais intricados e a vocalização mais complexa, não ficando lá em cima a maior parte do tempo – o que significa que Clementine tem noção do seu percurso e não quer ficar preso a nomenclaturas, pairando a sua voz, livre e errante, por entre elementos de jazz, blues, soul ou até da música clássica.

Ao longo de mais de hora e meia, com dois encores – o segundo pareceu desnecessário, apesar do improviso vocal de despedida com ele a lançar a palavra Adious, modelada das mais diversas formas, sendo acompanhado pela multidão –, foi fiel a si próprio. Como habitualmente, descalço, casaco comprido, cabeleira afro, mantendo-se na ponta do banco em frente ao piano, porte aristocrático e, no entanto, humilde na forma como se expõe, trazendo cá para fora raiva, amor, dor, doçura, tudo envolto naquela voz que parece trovejar para cima de uma plateia que deseja retribuir com calor ao homem que tanto lhes dá.

É verdade que nem sempre o sabe fazer da forma que parece a mais acertada, tendo em conta o contexto. Mas nestas coisas dos afectos não existem receitas. Como as canções de Clementine não param de reflectir, amar, saber dar e receber, saborear tanto o recolhimento individual como a partilha colectiva são coisas difíceis. Para já, no Coliseu, selou-se a relação de apreço mútuo com o público português. Esperemos que perdure.

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