Brasil: a cultura que silencia a dor das mulheres

Mas, francamente, o que pode ser mais radical do que uma mulher violentada a cada dois minutos? Hoje eu não apenas me declaro feminista com orgulho, mas declaro que precisamos do feminismo

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Yaoqi LAI/Unsplash

O mundo pesa. E esta semana pesou mais (especialmente para as mulheres) com a notícia do que ocorreu com a jovem de 16 anos violentada por cerca de 30 homens. Um deles divulgou o vídeo no qual vangloria a brutalidade do ato.

Dói para nós, mulheres, porque carregamos em comum marcas, aquelas que o machismo deixa, e o medo. A possibilidade de sentir o que ela sentiu não está distante da realidade de nenhuma de nós.

No Brasil, em 2014, foram registrados 47.646 estupros. Mulheres, em cerca de 90% dos casos. Uma a cada 11 minutos. Considerando a estimativa de que apenas de 10% a 35% dos casos são notificados, pode ser uma a cada dois minutos.

Quando você terminar de ler esse texto, no meu país, uma mulher vai ter denunciado um estupro e ao menos outras três vão carregar a dor caladas. Me entristece ter que dizer a alguns que poderia ser sua amiga, irmã, esposa, mãe. É verdade, mas saber se tratar de um ser humano, com o corpo e dignidade violentados, deveria bastar.

A barbárie deste caso trouxe à tona uma discussão que, normalmente, é tão invisível quanto os crimes subnotificados: a cultura do estupro. Mulheres, principalmente, estão encabeçando nas redes sociais esse debate, sobre o processo de formação dos indivíduos.

Na infância, as meninas são ensinadas a cuidar da casa, enquanto os pais comemoraram quando o menino de três anos já quer beijar todas as meninas da escola. Sem nenhuma iniciação a formação sobre sexo e gênero, os meninos adolescentes são incentivados à pornografia. E toda a gente sabe a fórmula da pornografia: mulheres que estão à disposição, sempre, para qualquer fantasia. Contraditório com o fato de que elas são ensinadas a se guardar, para não ficar mal falada? Claro que não. Eles precisam que existam todas as categorias: as santas e putas. Para que todas as suas necessidades sejam saciadas.

Uma pesquisa brasileira recente demonstra a cultura do estupro em números. Nela, mais de 60% responderam que concordam, parcial ou totalmente, com as seguintes afirmações: “Os homens devem ser a cabeça do lar”, “Tem mulher que é para casar, tem mulher que é pra cama”, “Casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família”, “Mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar”, “Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”. E se você pensa que as coisas estão mudando porque um caso que ganhou comoção internacional, pense de novo. As redes sociais e grandes portais brasileiros estão transbordando comentários que tentam relativizar a violência sofrida pela jovem. O possível envolvimento dela com o tráfico de drogas, ter sido mãe aos 13 anos, ter um ex-namorado envolvido entre os suspeitos e diversos outros argumentos são utilizados.

Até mesmo servidores da justiça do país estão trabalhando com a hipótese de não ter sido estupro. Aparentemente o vídeo que a mostra sangrando, sendo tocada por um homem que declara que ela foi violentada por mais de 30, não é suficiente para quem parece ter esquecido da Lei n° 12.015/2009

E não pense que cultura do estupro está tão distante do seu país. Em Portugal, a APAV recebeu, em 2015, mais de 18 mil denúncias de violência doméstica. Houve uma época em que eu declarava não ser feminista. Infelizmente, fiz isso (e talvez muitas mulheres ainda o fazem) por falta de conhecimento, pela cultura machista na qual fui criada, por não gostar de rótulos, por ter conhecido grupos radicais com os quais não concordava. Mas, francamente, o que pode ser mais radical do que uma mulher violentada a cada dois minutos? Do que ter medo de andar sozinha na rua pelo simples fato de ter um útero?

Hoje eu não apenas me declaro feminista com orgulho, mas declaro que precisamos do feminismo. Existem diversas formas de feminismo e a discordância sobre alguns pontos específicos não muda aquilo nos une: a luta indispensável contra esse sistema que nos oprime todos os dias.

O feminismo é por nós: Beatrizes, Larissas, Ritas, Anas, Marias. Para que possamos não mais ter medo. No Brasil, em Portugal e em nenhum país. Sigamos juntas.

A autora escreve em português do Brasil

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