Das dezenas de crianças raptadas por pais só um quarto regressa a Portugal

O rapto internacional, como forma extrema de alienação parental, será um dos temas debatidos em duas conferências esta semana em Lisboa e Santarém. Daniel Teixeira Eurico e Ivan Goite não desistiram de recuperar as filhas levadas pelas mães para outros países. Mas cada caso é um caso.

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Ao fim de muitas batalhas, Ivan Goite tem a filha a viver com ele em Portugal Daniel Rocha
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Daniel Eurico está uma vez por mês com a filha que vive em Espanha com a mãe Daniel Rocha

Daniel Teixeira Eurico sofre duplamente: por estar longe da filha e porque os pais dele, avós da criança, vivem com tormento essa ausência, pela qual ele se sente responsável. “Sinto que falhei com a miúda”, diz no fim da entrevista. Nas férias de Verão de 2015, a filha, de sete anos, foi para Espanha com a mãe. No dia em que devia ter sido entregue ao pai, para passar as duas semanas marcadas com ele, os primos, os avós e os tios paternos, a mãe informou o pai por email que ia fazer a vida em Espanha, o seu país. Considerava ser essa “a melhor opção para todos”. “Para mim, foi um horror. Para mim e para a minha família toda. A minha filha levou uma volta na vida dela”, diz Daniel Eurico.

A Autoridade Central Portuguesa era a sua grande esperança. “Pensávamos que era onde devíamos ir. É onde as pessoas vão quando estão em aflição.” A Autoridade Central designada pelo Governo português como entidade competente para avançar com os procedimentos e a cooperação judicial, previstos na Convenção de Haia, com vista ao regresso das crianças nestas circunstâncias, é a Direcção-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP).

A Autoridade Central tem a função de desencadear a cooperação judicial: transmite o caso à congénere do país para onde foi levada a criança, que por sua vez entra em contacto com a mãe ou o pai infractor, envolvendo a justiça desse país, sendo, no final, o tribunal no país de destino que, quase sempre, toma a decisão.

O regresso da criança não depende da Autoridade Central. E o número de pedidos para o regresso de crianças a Portugal, que chegam a esta entidade, é muito superior ao das crianças que efectivamente regressam, ou que não regressam mas vêem o seu processo concluído.

Entre 2010 e 2015, a Autoridade Central recebeu 334 pedidos de regresso de crianças levadas por um dos pais para o estrangeiro. Nos processos encerrados entre 2013 e 2015, apenas 43 crianças regressaram, podendo os seus processos ser relativos a anos anteriores àquele em que foram encerrados. A diferença é grande quando se compara o número total de 175 pedidos que deram entrada entre 2013 e 2015 (não havendo dados disponíveis antes disso) com os números dos processos terminados nesse ano, com um desfecho favorável ao regresso.

Nesses três anos, 70 processos foram resolvidos, mas apenas 43 a favor do regresso da criança: 17 em 2013, oito em 2014 e 18 em 2015. Para 27 crianças com os processos terminados nesse perído – entre 2013 e 2015 – a decisão foi o não regresso.

“Muitos factores” podem explicar a frequência do não regresso da criança ou da não resolução célere do caso, de acordo com o juiz de ligação de Portugal na Conferência de Haia, António José Fialho, que trata os pedidos que chegam do estrangeiro à Autoridade Central em Portugal: quando há “uma situação de risco intolerável” se a criança regressar; quando a decisão de não regressar respeita a vontade da criança [nos casos em que esta tem maturidade ou idade para decidir] ou quando o tribunal no país para onde a criança foi levada não reconhece a decisão no país de origem das responsabilidades parentais [que envolve ambos os progenitores em questões importantes da vida da criança].

Sobre este último ponto, António José Fialho realça que “as regras processuais de cada Estado podem ser muito diferentes entre si”. E exemplifica com um caso em que “houve uma regulação das responsabilidades parentais não reconhecida na Alemanha” onde foi determinado que a decisão do país de origem não respeitava as regras vigentes na Alemanha. Também há Estados que “simplesmente não respondem a ninguém”, nem a qualquer contacto das autoridades centrais dos Estados onde um dos pais pediu o regresso da criança, explica o magistrado. Acontece com alguns países fora da União Europeia (UE).

Situações extremas e desespero

"Os raptos são as situações extremas da alienação parental", diz Ricardo Simões, presidente da Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direito dos Filhos, que organiza a V Conferência Internacional Igualdade Parental Século XXI – Práticas e Perspectivas sobre a co-parentalidade e as crianças, a decorrer terça e quarta-feira na Escola Superior de Saúde de Santarém.

Também no dia 31, terça-feira, o Instituto de Apoio à Criança promove a IX Conferência das Crianças Desaparecidas no Auditório Novo da Assembleia da República, em Lisboa, onde o rapto internacional estará em foco. 

Na perspectiva dessa conferência, sobre alienação parental e rapto internacional, a presidente da Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas disse à Lusa que têm aumentado os pedidos de pais e mães desesperados que querem recuperar os filhos levados sem consentimento pelo outro progenitor. Patrícia Cipriano considera “absolutamente inconcebível” a morosidade nos processos de rapto parental, referindo que alguns pais ficam desequilibrados, perdem o emprego ou deixam de viver uma vida devido a estas situações: passam o tempo “a mandar emails para toda a gente, procurar os filhos por todo o lado, pensar como estarão e a pagar a advogados” para que os ajudem a resolver o caso.

O juiz António José Fialho aponta outro obstáculo: a execução do regresso, mesmo depois de o tribunal o decidir. “Pode haver um tribunal a decidir hoje e o regresso só se fazer passado muito tempo”, explica. “Para executar as medidas são precisos muitos apoios.” No caso de ser uma família com poucos meios, e se a autoridade consular mais próxima não der apoio, será difícil cumprir a decisão [que envolve despesas em viagens]. Uma pessoa com capacidade económica tem a vida facilitada. É isto que faz a diferença”, conclui.

Da mesma forma, uma pessoa com capacidade económica mais facilmente resolve o seu caso, contratando advogados no país para onde foi levada a criança. "Muitas pessoas não têm condições para o fazer. Resumindo: os pais que querem recuperar os seus filhos têm de ter dinheiro para os trazer de volta”, diz Ricardo Simões.

Ivan Goite, com dupla nacionalidade portuguesa e venezuelana, a viver em Portugal, está convicto de que não teria recuperado a filha sem ter constituído uma advogada em França, para onde a criança foi levada pela mãe, portuguesa, durante as férias de Verão de 2011, sem o pai saber. A partir daí, perdeu a conta às despesas em processos que interpôs por incumprimento da parte da mãe, uma queixa-crime no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) e em investigações que teve que desencadear por iniciativa pessoal.

“O papel da Autoridade Central é descobrir onde a criança está”, explica Sandra Inês Feitor, jurista e mestre em Direito com uma tese em alienação parental. E se o paradeiro da criança for conhecido, “a função passa logo por fazer diligências o mais rapidamente possível para que o juiz [naquele país] possa apreciar a situação e decidir à luz da Convenção de Haia”. E confirma: “Só o tribunal do país onde está a criança pode legitimar a sua saída.”

No caso de Ivan Goite, foi ele quem encontrou a criança, a pedido da própria Autoridade Central, onde lhe foi dito que dificilmente o processo teria o desfecho que ele desejava. Não desistiu. Procurou e descobriu num site de compras e vendas que a ex-mulher tinha vendido toda a mobília da casa onde vivia em Portugal. Falou com ex-vizinhos dela, chegou à empresa de mudanças que ela contratou, e à morada em França onde a ex-companheira se tinha instalado. Hoje, a filha vive com ele.

Inércia dos tribunais

Daniel Eurico não desistiu mas viu fecharem-se-lhe todas as portas: nos tribunais em Portugal e Espanha onde tentou interpor um processo por incumprimento do acordo por parte da mãe; na Autoridade Central para que accionasse a cooperação judicial com a congénere em Espanha e acelerasse o processo nos tribunais espanhóis e no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP), onde fez uma queixa-crime por subtracção de menor, arquivada, por considerar a queixa sem fundamento, por estar “a residência da menor fixada” junto da mãe, não se verificando “os elementos objectivos da incriminação.”

Acabou por aceitar um acordo. Assim, uma vez por mês, Daniel Eurico faz centenas de quilómetros à sexta-feira à tarde (para ir buscar a filha) e depois ao domingo à noite (para a ir levar). “Todos os meus medos se concretizaram”, diz. Quando se separaram, não aceitava quando a mãe dizia que teria melhores condições para criar a filha de ambos com o apoio da sua própria família em Espanha. Várias vezes ouviu: “Ninguém pode obrigar a mãe a viver em Portugal.” Sentiu, ao longo de meses, que para os tribunais era mais simples chegar a acordo rapidamente do que entrar em litígio com um tribunal estrangeiro.

“Essa é a realidade”, confirma Sandra Feitor. “Acontece muito um dos pais criar uma forma de bloqueio ao outro. E acontece muito um deles tomar essa postura de assumir o comando da situação, ao arrepio da lei. Muitas vezes [esses pais] fazem-no já contando com a inércia dos tribunais.”

"Assumir o comando" pode ser alterar a residência da criança e inscrevê-la numa escola do país onde tenciona viver. E se for feito sem o conhecimento ou consentimento do outro progenitor viola o disposto na nova Lei do Divórcio de 2008, que introduziu como importante alteração o desaparecimento do termo “poder paternal” e sua substituição por “responsabilidades parentais”. A nova lei determina que “as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores”, mesmo se apenas um deles tiver a guarda. A alteração da residência e da escola, como no caso da filha de Daniel Eurico, incluem-se nessas “questões de particular importância”. Mas muitas vezes a justiça não tem isso em conta, diz Sandra Feitor.

“Não temos falta de meios processuais e legislativos” para prevenir estas situações, diz a especialista. E enumera: a nova Lei do Divórcio de 2008, a Convenção de Haia, de que Portugal é signatária, o direito da criança à convivência com a família alargada (de ambos os lados) consagrado na Constituição, e o novo Regime Tutelar Cível de 2015 – que, entre outras novidades, introduziu a possibilidade de o tribunal determinar que uma equipa técnica multidisciplinar acompanhe e avalie o cumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais.

“Para muitos pais, [essa possibilidade] pode servir de modo a inibir” a intenção de não cumprir, explica a jurista e investigadora, que realça a importância desta medida como uma das que têm surgido para “travar as situações de incumprimento que muitas vezes precedem os raptos”.

Em 2015, de acordo com as estatísticas da Justiça, os incumprimentos da regulação do exercício das responsabilidades parentais representaram a grande maioria dos processos tutelares cíveis findos nas secções de Família e Menores dos tribunais de 1ª instância de todo o país, alcançando 18.084 num total de 51.333.

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