A figura dengosa de Uma Thurman no cartaz do filme Pulp Fiction podia ter saído da cabeça de Paul Anna Soik. Imagens de divas sedutoras como a da personagem Mia Wallace (que Thurman interpretou), Soik criou-as às dezenas. A ilustração para capas de literatura de cordel (ou pulp, na variação americana) da famosa editora Harlequin foi a principal ocupação deste norte-americano de Newark que, nos anos 1960, “tropeçou” na frota branca de navios bacalhoeiros e pescadores portugueses, que fizeram parte da paisagem e do quotidiano de St. John’s (Terra Nova, Canadá).

Para além de ilustrar, Paul Anna Soik (1919-1999) pintava. E para além de pintar, fotografava. Durante as décadas de 1960 e 1970, em sucessivas férias de Verão com a mulher, canadiana, registou a costa entrecortada da Terra Nova e em particular os homens do mar portugueses, que por ali ancoravam os seus navios quando alguma reparação se impunha ou quando o mar bravo não os deixava pescar. É este legado fotográfico que veio parar às mãos da associação cultural Bind’ó Peixe, que nos últimos anos se tem dedicado a valorizar a cultura e identidade piscatória da comunidade de Caxinas e Poça da Barca (Vila do Conde). Na exposição St. John’s, Porto de Abrigo – A Frota Branca de Paul A. Soik (Museu Marítimo de Ílhavo, até 23 de Outubro) juntam-se dezenas de obras destes três universos criativos de Soik, filho de pais bielorussos, que no início da década de 1950 se mudou para o Canadá, onde conheceu Mary Theresa Walsh, natural de St. John’s, capital da província da Terra Nova e Labrador.

A fotografia em diapositivo foi a base de muitos quadros que Soik pintou e serviu de inspiração para capas onde a aventura e o mar eram tema. Num estilo “muito realista e académico”, alguns destes quadros continham cenas da frota branca e dos seus pescadores, como explica Abel Coentrão, jornalista do PÚBLICO e presidente da Bind’ó Peixe.

O pequeno núcleo de imagens que agora se dão ver em Ílhavo (montadas em caixas de luz) não mostram um fotógrafo de talento extraordinário, mas revelam um importante (e belo) documento sobre a actividade e presença de uma frota de navios mítica (boa parte ainda à vela) e sobre várias gerações de homens que, quando já se praticava há muito a pesca por arrasto, mantinham a tradição da pesca à linha em cima de frágeis dóris. À semelhança de outros fotógrafos, escritores e artistas da época, Paul Anna Soik ficou deslumbrado com “o espectáculo de dezenas de navios, entre eles elegantes veleiros, como o Argus, o Gazela I ou o Creoula” e com o bulício “dos milhares de homens” que aportavam na Terra Nova “em busca de protecção”.

O objectivo utilitário com que Soik terá captado estas imagens não lhes retira valor. Os momentos em que se aproximou dos lugres deram-lhe as imagens mais fortes e apelativas. Nelas vemos a confusão de cordas e apetrechos da faina. E vemos como as tripulações trabalhavam e se mantinham a postos para zarpar, mas também como se divertiam a jogar à bola ou como se aperaltavam com roupas domingueiras para uma visita à cidade. Nas paisagens mais abertas, ainda que com uma grande dose de pictoralismo, Soik procura a imposição da acção humana e as alterações mais ou menos radicais que ela implica. Sempre com o mar à espreita.

As fotografias de Paul Anna Soik só podem ser vistas hoje no Museu Marítimo de Ílhavo, porque o canadiano Jean-Pierre Andrieux, memorialista empresário e estudioso da presença portuguesa na Terra Nova, “não é de guardar os seus tesouros num cofre ”. Depois da morte de Mary, em 2014, a família Soik decidiu doar-lhe centenas de diapositivos. Um interesse comum pela pesca do bacalhau juntou Andrieux e a Bind’ó Peixe, encontro cujo resultado está agora em St. John’s, Porto de Abrigo. O que significa que, para além de haver quem não guarde tesouros, ainda há quem os queira partilhar.