São Miguel: Um quarteirão que é uma festa de vizinhos

Há azorean folkazorean beautiesazorean punk. Traduzindo: há, nas costas de uma figura feminina estilizada, dois corações, a representar a viola da terra — os corações são o de quem fica e o de quem parte; há uma mulher, de perfil e perna alçada, com capote e capelo que durante séculos foi traje tradicional, com o capuz, largo em arco suportado com osso de baleia; há um ananás de óculos de sol, colar com picos e uma coroa à laia de crista, um visual inesperado para um dos produtos-símbolo do arquipélago. Há um encontro entre a tradição e a modernidade nas linogravuras, “numeradas e assinadas”, de um micaelense de gema, orgulhoso autodidacta, co-proprietário da Miolo – Livraria, Galeria e Editora, ambições de fôlego num pequeno espaço portas abertas para a rua, braços abertos para O Quarteirão. 

Mário Roberto Carvalho e Vítor Marques da Cunha chegaram em Dezembro com uma “proposta indecente” para a vizinhança. Uma espécie de a união faz a força neste rectângulo — que se desenha entre a Rua Machado dos Santos e a Rua Guilherme Poças Falcão (os topos) e se distribui pelas ruas d’Água, Pedro Homem e Carvalho Araújo — a norte do centro de Ponta Delgada. Chamam-lhe, então, O Quarteirão, muitas vezes confundido com “quarteirão das artes”. “Não temos massa crítica nos Açores para ter um quarteirão das artes.” Vítor Marques da Cunha desfaz essa ideia com um sorriso quase resignado para contrapor com a verdadeira vocação de O Quarteirão: a cultura, o lazer e o bem-estar. Será ele o nosso guia por estas ruas onde se quer “aproveitar o que existe e dar-lhe uma nova modernidade”.

Se ouvimos o desapontamento de uma criança quando chega aos Açores, “mas isto é uma cidade”, não conseguimos disfarçar um sorriso. Ponta Delgada, capital dos Açores, é mais vista como uma porta de entrada em São Miguel, até no arquipélago, e quem chega não vem pela “cidade”, vem em busca da “ilha verde”. Excepto, talvez, em alguns momentos especiais do ano: o festival Walk & Talk, que já está imbricado no tecido urbano de Ponta Delgada (e não só), e o festival Tremor, que terminou a sua terceira edição uma semana antes de chegarmos, no início de Abril, espalhando música um pouco por toda a cidade. A cultura urbana chegou a Ponta Delgada — e vai segura, formosa e ambiciosa, como veremos.

Estamos no centro de Ponta Delgada que tem na igreja matriz uma espécie de quilómetro zero, mesmo ao lado das fotogénicas portas da cidade. Parte das ruas e praças que daqui irradiam são pedonais, até que novamente os carros povoam o emaranhado de ruas estreitas. É nesta espécie de fronteira (e não somos nós que lhe damos o nome) que se situa o Cantinho dos Anjos, numa esquina da Rua Hintze Ribeiro, pavimento onde o negro (basalto) domina e o branco é desenho.

Atravessada a rua, entramos em território geográfico “oficial” de O Quarteirão, mas o espírito já está todo aqui — como está no Louvre Michaelense, “mercearia do mundo”, ou no Arco 8, galeria-bar, exemplifica Vítor Marques da Cunha. Um espírito que se quer alternativo, de convivialidade, de fluxos de sinergias, de boa vizinhança — de felicidade, resumirá Fátima Mota, proprietária da Galeria Fonseca Macedo, no extremo norte de O Quarteirão.

Ela, que até está aqui há quase 16 anos, não tem dúvidas de que o projecto “é mobilizador”, ainda que saiba que na sua galeria, “com programação própria e representação de artistas” (e por estes dias de paredes vazias: à espera do pintor José Loureiro), não haverá grande impacto directo. “As pessoas evitam vir à galeria porque não podem comprar nada”, considera. E faz as contas: em 2002 passaram pela galeria seis mil pessoas, em 2015, pouco mais de duas mil, “e vendes em proporção”. Sem desânimos — “não há dinheiro, mas ao menos somos felizes”.

Quem vê Sara França debruçada sobre a sua máquina de costura diante da janela de O Estúdio tende a concordar. Sara é designer de moda e o seu nome é marca de roupa e acessórios; Fábio Oliveira é artesão do couro, Pele e Osso é o nome do projecto. Começaram a trabalhar juntos o ano passado, sem se conhecerem: nessa altura, Sara ainda estava em Lisboa, onde estudou, começou a carreira e apresentou a primeira colecção; Fábio já estava em Ponta Delgada, para onde veio com os pais em criança. Quando Sara quis fazer malas de senhora indicaram-lhe o nome de Fábio e em Dezembro acabaram por se juntar no mesmo espaço. É uma loja-atelier onde a música é omnipresente (entramos ao som de Arcade Fire).

Sara saiu há 10 anos da ilha e “não se passava nada”. “Senti uma diferença enorme nos últimos dois anos”, conta, “não é só o efeito Ryanair, as pessoas estão mais abertas, os bares mais giros, a noite mais alternativa, há mais bandas e exposições.” “Daí a minha vinda, as pessoas procuram coisas novas.” No entanto, não tem ilusões, “há muito que fazer”, aponta. O Quarteirão é um bom começo. “Quando decidimos instalar-nos já se falava de O Quarteirão e nós sentimos que nos enquadrávamos”, explica, “é uma envolvente pequenina, mas as pessoas também se encontram facilmente e ajudamo-nos uns aos outros, aproveitamos o melhor de cada um.”

E é aqui n’ O Estúdio que encontramos Fernando Fonseca, designer que dá nome a um atelier (hoje fechado), no que parece ser um testemunho involuntário da “efervescência”, a palavra é dele, que se vive n’ O Quarteirão. “O facto de reunir pessoas da área propicia-o”, afirma, “e já se tomou consciência da importância do trabalho em conjunto”. Claro que isto “ainda está fresquinho, tem três meses...”

Na verdade, esta comunidade informal, uma espécie de enclave a norte da zona mais comercial de Ponta Delgada, não tem ainda uma homogeneidade e densidade de projectos que permita dizer: “Estamos n’ O Quarteirão”. No entanto, em breve O Quarteirão passará a ter uma “imagem”, com a “ajuda” da edição deste ano do Walk & Talk (15 a 31 de Julho), que elegeu esta zona da cidade como uma das que será entregue a curadores para “mapear o que falta para a tornar mais dinâmica, mais visitável”, explica Vítor Marques da Cunha. Aponta como lacunas a sinalética, o mobiliário urbano, a recuperação de espaços vazios, um folheto específico dos espaços que já existem e dos que estão prestes a abrir — como a hamburgueria Supléxio. Tudo o que ajude a perceber que “esta zona de fronteira não é o fim”.

“Juntar os vizinhos”

Catarina Ferreira sabe-o bem. Há dez anos abriu a Rotas da Ilha Verde, primeiro e único restaurante vegetariano da ilha, onde se servem “entre 90 a 100 refeições diárias”. Já tem lugar assegurado nos roteiros mais ou menos informais da ilha pela singularidade da proposta e desde 2013 é um dos promotores do Dia do Vizinho. “Devia ser antes o Apartado 9500, vem a ilha toda”, brinca Catarina. “Desde que abrimos temos essa ideia de aproveitar sinergias”, afirma, “por isso O Quarteirão faz todo o sentido, vem ajudar a fazer crescer todas as coisas à nossa volta”. 

Há dez anos que partilha o edifício com um estúdio de ioga, no primeiro andar, a Casa Ynyasa, e quase diante a Casa Mouzinho da Silveira (onde os primeiros decretos do governo liberal português foram emitidos) foi adquirida pelo município para albergar um Centro de Estudos Antero de Quental. Entretanto, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades e a previsão é que aqui se instalem diversas instituições de solidariedade social. Os promotores d’ O Quarteirão não se conformam, “deveria ser um incubadora de indústrias criativas”, defende Vítor Marques da Cunha. Porque com o Museu Carlos Machado num dos extremos e a Igreja do Colégio (núcleo de arte sacra do museu) no outro, a vocação cultural é “quase natural” neste território.

O 3/4 começou por ser café-bar e está quase a meio caminho entre um e outro. Continua a ser um ponto incontornável da noite mais alternativa destas paragens e em 2013 passou a dar nome a um hostel, o primeiro a abrir na ilha. “As low cost ainda não tinham chegado”, lembra Ana Pedro, a proprietária, escalabitana a viver em São Miguel há 18 anos. A cidade mudou imenso, nota, e nestes últimos anos acelerou-se o ritmo. “Há muitos mais restaurantes e mais a abrir”, exemplifica, “e aqui há um ano havia muitas placas de imobiliárias, agora não”. 

Esta sempre foi uma zona preferencial para estudantes Erasmus, mas de há um ano para cá as rendas começaram a subir. Um sinal de uma gentrificação incipiente numa zona onde os hostels estão implementados (o Nook e o B&B by Lapsa), os ateliers de arquitectura, design e moda se instalam, as galerias chegam, lojas de artesanato abrem portas mas onde os “antigos” não deixam de ser parte integrante da nova dinâmica.

O café Clipper continua a ser ponto incontornável para euromilhões e raspadinhas e o café Travassos tem futebol na televisão (e o Benfica no coração), numa antiga fábrica de sal vive um restaurante e bar de jazz, há um hotel de charme e uma mercearia. Entre abertos e prestes a abrir, há 21 “moradores” n’ O Quarteirão.

Mas, como diz Catarina Ferreira, O Quarteirão “é juntar os vizinhos”. “E queremos mais.” Este é, portanto, um work-in-progress e se Vítor Marques da Cunha conseguir o que quer, é um trabalho que nunca terminará.

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Bar 3/4 Sara França Vítor Marques da Cunha, impulsionador do quarteirão O restaurante vegetariana de Catarina Ferreira Fábio Oliveira, artesão A galerista Fátima Mota