Uma história da música guardada entre quatro paredes

Soundbreaking, o último projecto em que esteve envolvido George Martin, o produtor dos Beatles, é uma viagem à história da música gravada. Da invenção do microfone a Elvis e aos Beatles, destes ao disco, ao hip hop, à electrónica. Estreia esta terça-feira no Odisseia.

Fotogaleria
Malcolm Cecil, produtor com Stevie Wonder de álbuns históricos como Talking Book e Innervisions, em busca de novos sons DR
Fotogaleria
Johnny Cash foi guiado pelo produtor Sam Phillip no início da carreira e, no fim dela, teve em Rick Rubin alguém que soube dirigi-lo novamente à essência da sua música DR

A gravação e reprodução de som, surgida no final do século XIX, não se revelou o apocalipse que muitos previram quando Edison apresentou ao mundo o seu fonógrafo de cilindros. Por muitos entenda-se vários músicos, que temiam ver o seu trabalho enquanto artistas de palco drasticamente reduzido, e grande percentagem dos comerciantes que lucravam com a venda de partituras – onde se incluíam também músicos e compositores.

Essa história era, afinal, o início de uma outra. A história do que acontece entre portas, no estúdio, longe do olhar público. Isso nos contará Soundbreaking, o documentário em oito episódios que tem estreia esta terça-feira, no canal Odisseia, às 21h30. Foi o último projecto em que se envolveu George Martin, o lendário produtor dos Beatles, antes da sua morte, em Março, aos 90 anos.

No site oficial da série realizada e produzida por Jeff Dupre e Maro Chermayeff, esta é apresentada, em traços gerais, da seguinte forma: “Da invenção do microfone ao sintetizador Moog, do fonógrafo ao streaming digital, Soundbreaking move-se entre o passado e o presente para contar as histórias por trás dos sons, e revela como a inovação redefiniu não apenas aquilo que ouvimos e como ouvimos, mas a nossa própria noção do que é e do que pode ser a música”. Em oito episódios, organizados não de forma cronológica, mas temática, passaremos pelo nascimento da música eléctrica e a forma como essa evolução tecnológica foi aproveitada para a criação de novas formas de música (do nascimento do blues eléctrico de Muddy Waters à música electrónica, passando por Jimi Hendrix ou Stevie Wonder). Iremos concentrar-nos nessa componente indispensável da fruição musical que é o ritmo, do funk de James Brown e do disco-sound dos Chic à Single ladies de Beyoncé. Acompanharemos a revolução trazida pelo sampling, mergulhando no Bronx de há 30 anos, berço do hip hop e seguindo décadas fora até ao presente. Veremos o som reunir-se à imagem, porque a música popular urbana não se constrói apenas do que ouvimos, mas também da forma como os músicos se projectam visualmente – eis-nos chegados à era do videoclip e da MTV. Por fim, dia 12 de Julho, data da emissão do último episódio, perceberemos com o formato em que ouvimos define também o que ouvimos: do nascimento do conceito de álbum, com o In The Wee Small Hours de Frank Sinatra, até às cassetes piratas onde os fãs dos Grateful Dead registavam os concertos da banda e ao presente onde toda a música está disponível e em que a audição musical é tão pulverizada quanto os géneros musicais existentes.

O início, esta noite, faz-se com os cientistas e feiticeiros do som, os homens responsáveis por erigir a arquitectura sónica do nosso contentamento. “A música é o único ponto em comum, a linguagem universal que nos junta a todos, independentemente da raça, nacionalidade, idade ou rendimentos”, afirmou George Martin. Falava de Soundbreaking, documentário que foi preparado ao longo de cinco anos e que inclui entrevistas a mais de 150 figuras das mais diversas áreas musicais: McCartney e Ringo, BB King, Tom Petty, Ben Harper, Chuck D, Questlove, Brian Eno, Rick Rubin, Elton John ou Tony Visconti (em Portugal, antecedendo cada episódio, David Fonseca, GNR, Zé Pedro ou Linda Martini contarão da sua experiência relativamente a cada um dos temas abordados). Todos os processos abordados e as histórias contadas são contextualizadas com imagens de arquivo, algumas inéditas – e eis o jovem Elvis incendiário, acabado de sair dos Sun Studios de Memphis, os Beatles em palco no The Cavern, em Liverpool, os Run DMC em acção no início de carreira ou Johnny Cash e Rick Rubin, na casa deste, a preparar o renascimento do Man In Black no início da década de 1990.

Essas imagens, e as histórias contadas na primeira pessoa pelos protagonistas, constituirão a porção mais interessante do documentário para os espectadores já familiarizados com a história da música gravada na era da pop. Os demais, a julgar pelo primeiro episódio, terão acesso, em versão “digest”, a uma introdução ao mundo de possibilidades que se foi abrindo progressivamente aos músicos e produtores.

Tony Visconti, o produtor de T. Rex e David Bowie, conta que, quando a música o fascinou na adolescência, “queria ser uma estrela rock, queria ter as raparigas gritar, queria uma limusine, queria isso tudo”. Mas depois ouviu atentamente o trabalho que George Martin desenvolvia com os Beatles, a secção de cordas sobre Yesterday ou os arranjos de Eleanor Rigby, e a sua ambição passou a ser outra. “A partir daquele momento, quis ser o George Martin: estar no estúdio a fazer aquele tipo de trabalho, a experimentar daquela forma e a criar grandes obras artísticas que só existem em fita. Isso é muito importante. É um tipo de arte muito diferente das actuações ao vivo. Era isso que queria. Queria ser o George Martin”.

Martin, que ainda teve tempo para ver o resultado final de Soundbreaking, acaba por ser a figura tutelar da série. Apesar de, segundo os realizadores, se ter queixado de “aparecer demais”, a verdade é que os seus conhecimentos, o facto de ter atravessado no activo todo o período temporal que a série abarca e o seu estatuto enquanto produtor da que terá sido a mais famosa e influente banda do planeta, fazem dele a pessoa indicada para cicerone oficioso de Soundbreaking. A partir dele, ou com ele, abrem-se as possibilidades. O Wall of Sound de Phil Spector e, no extremo oposto, Cat Stevens a preferir uma gravação o mais fiel possível à íntima gravação caseira – sentia-se intimidado pelo estúdio e todos os seus técnicos, sentia-se “numa nave espacial” que não percebia como funcionava. Pela mesma altura, Sly Stone e Stevie Wonder tornavam-se eles próprios produtores, quebrando as regras de gravação no início dos anos 1970. Uma década depois, a música gravada tornou-se a matéria a partir da qual visionários nova-iorquinos criaram uma nova forma de música: apresentava-se o hip hop.

Soundbreaking pretende ser uma história de som e de cultura, de evolução tecnológica alimentando transformações musicais. De como, ao longo de um século, os músicos e produtores, e músicos que eram também produtores, foram encontrando forma de transformar em música os sons que lhes povoavam a cabeça. Tudo para nosso prazer. 

Sugerir correcção
Comentar