Fantasia, sentimento, divertimento: há boa cantoria em Lisboa

Não terá a opção pelo Salão Nobre, e por uma encenação dependente de sugestões subtis, diminuído a própria ópera, condenando-a à apreciação de uns poucos? De qualquer modo, o espectáculo é muito conseguido.

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Num dos ensaios de Lindane e Dalmiro Bruno Simão/cortesia do Teatro Nacional de São Carlos

Começo por saudar a ópera que agora ressuscita, após um interregno de mais de dois séculos: é uma fantasia cómico-trágica (muito divertida, mas também cheia de sentimento) escrita com desenvoltura, num estilo clássico de matriz italiana plenamente sintonizado com o seu tempo; equilibra de forma notável a ligeireza e a emotividade, a caricatura e a complexidade, tendo tudo para agradar às audiências de hoje excepto, talvez, a extensão (três horas de música). Saúdem-se seguidamente o maestro João Paulo Santos, a quem se deve a recuperação da partitura e a montagem da mesma no Teatro Nacional de São Carlos, e as vozes envolvidas, que fazem um trabalho extraordinário.

Quando, em 17 de Dezembro de 1789, foi pela primeira vez levada à cena a ópera Lindane e Dalmiro, os cantores que pisaram o palco eram, todos eles, italianos; hoje, na recuperação da mesma ópera para os ouvintes modernos, todos eles são portugueses. No final do século XVIII, quatro dos cantores eram castrati que prestavam serviço na Capela Patriarcal; hoje, os seus papéis são desempenhados por mulheres que fazem carreira pela Europa. No passado, o palco, no Real Teatro da Ajuda, era avantajado (14x14 metros, aproximadamente), e todos os recursos cenográficos foram mobilizados para produzir efeitos especiais espectaculares; hoje, tendo a ópera sido montada no Salão Nobre, o palco é pouco mais do que um estrado, os recursos são mínimos, e o efeito da encenação repousa largamente na imaginação do espectador. No passado, a ópera celebrava o aniversário da rainha D. Maria I, e foi apresentada diante da corte; hoje, a ópera é de todos, mas acedem a ela tão poucos como antigamente.

Nestas oposições revela-se quer a grande mudança social ocorrida entretanto, quer a dificuldade contemporânea em reinventar um lugar para aquelas óperas que não lograram entrar no repertório teatral corrente. Hoje dispomos de cantores de grande qualidade, mas, salvo excepções, a sociedade portuguesa não encontrou espaço para eles. Hoje conhecemos muita música portuguesa de grande valor, mas o investimento na sua recuperação e divulgação continua paupérrimo.

O Teatro Nacional de São Carlos não ousou apresentar a ópera na sua sala principal (que sucedeu na atenção dos lisboetas, a partir de 1793, ao Real Teatro da Ajuda, que se localizava atrás do Jardim Botânico Tropical) porque, imagino, terá duvidado da adesão do público a uma ópera desconhecida, composta por um compositor também ele quase desconhecido, João Cordeiro da Silva (1735-depois de 1808). Mas não terá a opção pelo Salão Nobre, e por uma encenação dependente de sugestões subtis, diminuído a própria ópera, condenando-a à apreciação de uns poucos? Hoje sabemos que ela merece outro cenário, e outro esforço de captação de público.

De qualquer modo, o espectáculo é muito conseguido. Luca Aprea (encenação), António Lagarto (cenografia e figurinos) e José Espada (desenho de luz) souberam modelar imaginativamente o espaço e caracterizar os personagens na aparência, na atitude e no movimento, providenciando também, com o bailarino Pedro Ramos, os elementos de estranheza fantástica implicados no libreto de Gaetano Martinelli.

A soprano Sandra Medeiros (Lindane) tem um papel extremamente exigente, que desempenha com garra e precisão; a meio-soprano Cátia Moreso (Baronesa) é impagavelmente firme e expressiva; a meio-soprano Raquel Luís (Dalmiro) soube alardear segurança e sensibilidade numa parte exigente, em que pode ainda evoluir; a soprano Joana Seara (Giacinta) mostra-se briosa e ferozmente bela; os barítonos João Merino (Don Fabrizio) e Diogo Oliveira (Marquês Pancottone) têm desempenhos impressionantes, o primeiro gerindo com suavidade o balanço entre sentimentos, o segundo exacerbando a veia cómica do personagem. O tenor Carlos Guilherme, caso invulgar de longevidade artística, apresentou-se com uma voz redonda e pujante, aliada à sua graça característica. Já a orquestra, na récita da estreia, foi irregular, com demasiados momentos de desconcentração e falhas ocasionais; o fraseado e a articulação dos violinos mereciam ter sido mais trabalhados por João Paulo Santos no sentido quer de uma maior ligeireza, quer de uma maior exactidão.

 

 

 

 

 

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