Um palestiniano, uma israelita, uma iraniana – não é o início de uma anedota

Na recta final do FIMFA, um trio de espectáculos sobre a guerra: até sábado, no São Luiz.

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Em The Smooth Life, o palestiniano Husam Abed desce até à infância num campo de refugiados IRENA VODÁKOVÁ
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Os soldados-marionetistas de Count to One, da iraniana Zahra Sabri, trocam as armas pelo barro MANI LOFTIZADEH
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Os soldados-marionetistas de Count to One, da iraniana Zahra Sabri, trocam as armas pelo barro REZA MOUSAVI
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Neta de um sobrevivente de Auschwitz, a israelita Yael Rasooly evoca memórias familiares em The House by the Lake NIR SHAANANI
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Neta de um sobrevivente de Auschwitz, a israelita Yael Rasooly evoca memórias familiares em The House by the Lake NIR SHAANANI

Um palestiniano, uma israelita e uma iraniana entram no Teatro São Luiz. Não é o início de uma anedota. É o começo de um cruzamento que o FIMFA – Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas de Lisboa preparou para a sua 16.ª edição. Os espectáculos de Husam Abed (Palestina), Yael Rasooly (Israel) e Zahra Sabri (Irão) abordam as suas experiências com a guerra: são três visões escavadas em convicções e percursos pessoais, vindas de países cuja convivência tem sido historicamente conflituosa.

Desde terça e até sábado, Husam Abed apresenta The Smooth Life, espectáculo de pequenas formas que é maneira de desfiar a sua biografia familiar enquanto prepara uma refeição que, no final, partilhará com o público (oito espectadores por sessão). Nascido “acidentalmente” num campo de refugiados na Jordânia, Husam não é o típico actor/manipulador de marionetas com uma formação ligada ao teatro e à performance. Formou-se em Química e aproximou-se deste universo ao trabalhar em projectos de educação no campo de refugiados onde cresceu. As marionetas foram inicialmente uma ferramenta para chegar às crianças; só em 2010 viu pela primeira vez um espectáculo, em Beirute.

A falta de referências, confessa ao PÚBLICO, atraiu-o ainda mais para esta forma teatral, e quando investiu num mestrado em Artes Performativas em Praga não demorou a perceber que precisava de encontrar uma linguagem particular que lhe permitisse falar, antes de mais, da sua história. “Senti vontade de fazer um trabalho experimental, misturando cozinha e storytelling. Além de que o teatro de sombras, feito com marionetas, é considerado a raiz do teatro árabe.” The Smooth Life é, por isso, um espectáculo em que Husam anda para trás, desce até à infância no campo de refugiados de Baqa e à relação com o pai – “uma vez que afectou toda a minha vida”, justifica.

A peça é a combinação delicada de tudo isto – as raízes, a infância e os seus ecos intrometendo-se no dia-a-dia, a comida como expressão cultural, o humor, as memórias, os desejos, e a curiosidade de perceber como “vindo de uma comunidade palestiniana pós-guerra” pode encontrar-se com espectadores de comunidade distintas, com outras histórias e tradições. The Smooth Life funciona como partilha, esperando gerar com isso um encontro, e não apenas um desabafo.

E se o cenário de guerra está sempre presente, sem que Husam tenha de gritar para que o oiçamos, o espectáculo alimenta-se (antes de alimentar literalmente as bocas do público) de “situações ingénuas e simples” da sua infância. “Não quis falar directamente de acontecimentos históricos, quis voltar-me para os pormenores humanos e deixar que a política corra em fundo.”

Estas quinta e sexta-feira, o São Luiz abre-se também para o mais explícito manifesto anti-guerra da iraniana Zahra Sabri. Em Count to One, Zahra coloca em palco três soldados-marionetistas que decidem depor as armas e deixar-se embalar pelos versos do poeta persa Omar Khayam (século XI). “Todos os poemas de Khayam são compostos por quatro versos e na sua maioria falam da vida humana, desde o nascimento até à morte”, explica a encenadora. “E obedecem a uma temática central: esquecer o passado, viver no presente, não pensar no futuro. Foi esta mensagem que me inspirou.”

Os soldados de Zahra Sabri assumem o presente ao debruçar-se sobre um tabuleiro para moldar barro e construir figuras que tanto podem tomar a forma de pássaros como de uma bailarina. Trocam os gestos brutais pela poesia da terra. “A guerra é feita em nome de negar o passado ou ganhar um futuro, ao passo que Khayam nos diz que devemos viver no presente”, contextualiza. Count to One foca-se no “milagre do nascimento”, no agora absoluto. À destruição cega da guerra, Zahra contrapõe pequenas e frágeis esculturas. Barro a tapar os canos das armas.

Três irmãs à espera

Tal como Husam, também a israelita Yael Rasooly (em parceria com Yaara Goldring) parte da história familiar para enformar The House by the Lake, sexta e sábado no FIMFA. Neta de um sobrevivente de Auschwitz, Yael recorda-se desde criança “do peso deste facto, sobretudo em tudo aquilo que não era dito”. “O sentimento de uma horrível e incontável verdade levou-me, ainda muito nova, a ler uma série de livros sobre o tema, assim como a ver filmes que me ficaram gravados na memória.” Mais tarde, a visita em adolescente aos guetos e aos campos de concentração na Polónia impressiou-a de tal maneira que durante quase dez anos nem conseguiu pegar em nada que se relacionasse com o Holocausto.

The House by the Lake é um espectáculo de pacificação com toda essa experiência passada. Após uma fase de documentação e de entrevistas a outros sobreviventes desse período negro da História do século XX, Yael e Yaara detiveram-se no quão importante terá sido para uma criança ter um objecto que ajudasse a suportar a realidade. “Um cobertor ou uma boneca podiam representar toda a existência de uma vida, de um lar, de uma família. Um consolo numa situação de solidão extrema, de medo, um escape mental da fome e da dor. E o poder da imaginação e da criatividade até nos recantos mais sombrios.”

Com este contexto em mente, as duas artistas trabalharam na construção de três bonecas, três irmãs que estão escondidas à espera que a mãe regresse, e encheram-nas de “sonhos, humor, jogos, ciúmes e competição por afecto e atenção”. Nesta casa, junto a um lago, a normalidade – tão perto de descambar em insanidade – mantém-se tocando Schubert, aprendendo gramática francesa ou dançando ballet. Peça de uma óbvia dureza, lida com esta manutenção da normalidade como acto tão desesperado quanto essencial à sobrevivência.

The House by the Lake vê-se também como um lamento pela infância destruída das crianças que, em situações de guerra, escapam à morte. E recorda que, mesmo terminada a guerra no seu sentido mais literal, uma outra se inicia nos sobreviventes: a guerra contra o trauma, para fazer florescer uma vida por entre os sinais da devastação. Embora as marcas nunca desapareçam, como sugere Husam quando cozinha a tradicional makloba e convida oito espectadores para replicar os almoços familiares de fim-de-semana. Eram sempre nove à mesa.

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