Problemas europeus não dão folga no combate ao défice de Portugal

Para o bem, mal e as incertezas, a Europa está definitivamente connosco. A consolidação das contas públicas é objectivo que não depende da habilidade negocial de António Costa

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António Costa com Angela Merkel AFP/TOBIAS SCHWARZ

A agenda europeia, com cascata de problemas, incertezas e dossiês complicados, não dá folga para o combate ao défice de Portugal. Esta é a opinião de personalidades tão distintas como Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, Miguel Morgado, deputado do PSD, Carlos Gaspar, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), e António Nogueira Leite, catedrático de Economia da Universidade Nova de Lisboa. Se Ricardo Paes Mamede, professor de Economia Política do ISCTE-UL, admite que pode haver menor pressão sobre Portugal, adverte para os efeitos, imprevisíveis, da instabilidade na Europa.

“A consolidação das contas públicas é objectivo de primeira importância, Portugal tem de sair em 2016 do procedimento de défice excessivo, claramente inferior aos 3%, o que nos permitirá liberdade política económica e social”, afirma, ao PÚBLICO, o chefe da diplomacia portuguesa a uma semana de a Comissão Europeia decidir [esta quarta-feira] se aplica sanções ao nosso país e a Espanha pelo incumprimento do défice no triénio 2011-2015.

“Não estamos em condições de aproveitar breaks [descansos]. Quanto mais prosseguirmos o nosso caminho, independentemente dos azares alheios, maior grau de liberdade ganhamos caso a situação continue a caminhar para a pré-desagregação da Europa”, considera Nogueira Leite. A única diferença visível para com a opinião do titular do MNE, a referência à pré-desagregação europeia feita pelo catedrático, será sempre atribuível à prudência diplomática do ministro do Palácio das Necessidades. “Há nuvens negras no horizonte europeu”, concede, no entanto, Santos Silva.

É o mesmo nevoeiro que Paes Mamede observa: “Estamos numa situação de enorme instabilidade na Europa.” Que Miguel Morgado sintetiza com “é difícil fazer previsões neste quadro europeu.” O que o “número dois” do Governo define de forma mais conveniente ao executivo. “Quando penso nos riscos da política portuguesa não coloco riscos internos, a oposição de direita tem feito o seu trabalho, há o apoio de uma maioria parlamentar e de outros órgãos de soberania, o Presidente da República, os riscos que vejo são externos”, destaca o ministro.

Para o bem, mal e incertezas, a Europa está, definitivamente, connosco. O que determina similitudes de posições impensáveis. “Um país com as vulnerabilidades de Portugal só tem a perder com a fragmentação da União Europeia (UE)", sentencia o parlamentar do principal partido da oposição. “O que infelizmente parece mais provável é uma desagregação [da UE] que pode ser rápida ou de lenta agonia. O cenário bom seria de maior integração. Só com mais integração conseguimos o que no contexto actual é impossível e que muitos clamam: mecanismos de maior federalização dos passivos dos diferentes países, a chamada mutualização da dívida”, precisa António Nogueira Leite, ex-membro do Conselho Nacional do PSD, hoje distante de Passos Coelho.

As aproximações são múltiplas, algumas improváveis, porque as observações do que ocorre na Comissão Europeia, da agenda às decisões e da articulação de Bruxelas com os Estados-membros, partem de um pequeno país. O nível de intrusão dos eurocratas, funcionários sem legitimidade democrática, tem a caução dos princípios que norteiam a UE, ditados pelos países do Norte e Centro da Europa. Esta realidade preside às análises. As responsabilidades governativas aconselham prudência. Quem comparticipa da posição da União e comparte as teses do Partido Popular Europeu – o PSD – lança avisos.

“Se o Governo quiser flexibilidade dentro das regras necessita de credibilidade interna e externa, não se pode fazer uma negociação com documentos não credíveis, como o draft do Orçamento do Estado (OE) ou o Programa de Estabilidade”, observa Miguel Morgado. “A flexibilidade orçamental também depende da trajectória para o futuro, que supõe uma estratégia credível a médio e longo prazo, mas o Governo não tem essa essa estratégia mas sim a de se manter no poder”, acusa o deputado.

“O que está a surpreender é que este Governo pôs outra vez a política no centro, a política europeia faz-se com política, não é apenas aceitar ou raciocinar como se houvesse medidas pronto-a-vestir”, contrapõe o ministro Santos Silva. “Há que falar, defender os nossos interesses e chegar a compromissos”, sustenta.

Economia arrefecida

“A componente externa não ajuda, a Europa está muito esclerótica, está tudo a olhar para o curto prazo, aliás os países que na América Latina seguiram o modelo do crescimento pelo consumo, como o Brasil e a Venezuela, estão na débacle”, anota António Nogueira Leite. “Sem a intervenção do Banco Central Europeu nos mercados onde já iriam os juros da nossa dívida pública?”, interroga.

Se não há break duradouro existe um hiato.  “Portugal não está agora no radar, não somos um problema relevante, embora vamos ter mais concorrência comum do que em 2011, porque o impulso de 1995 a 2005 foi demasiado acelerado e não fizemos as reformas estruturais”, afirma Nogueira Leite.

Já o chefe da diplomacia refere os desafios europeus de grande magnitude que estão no topo da agenda europeia. “Terrorismo, refugiados, migrações, referendo de 23 de Junho para a manutenção da Grã-Bretanha na UE [Brexit] e arrefecimento da economia”, enumera. São questões de grande volatilidade. “Hoje, 11 de Maio, às 17 e 55, posso dizer…” é a expressão recorrente do ministro dos Negócios Estrangeiros que traduz a imprevisibilidade actual.

“Mesmo que os britânicos fiquem na União Europeia, a negociação feita do pacote de David Cameron pode levar outras capitais a invocarem negociações idênticas de parceria com estatuto especial”, adverte Miguel Morgado. E a separação não afasta o problema, pois seria um processo complexo e lento que levaria a mais estagnação.

Do mesmo modo, são imprevisíveis os efeitos de contágio da indefinição europeia sobre os refugiados. “A convocatória na Hungria de um referendo sobre as quotas dos refugiados pode abrir uma caixa de Pandora, e as multas a Estados-membros que recusem as quotas levanta a questão de saber se alguém paga multas coercivas”, prossegue o deputado do PSD. A Europa sabe que, na Líbia, estão centenas de milhares de refugiados à espera de melhores condições de mar para atravessar o Mediterrâneo. A pressão migratória vai continuar sem que a União tenha arrumado a casa.

A esta lista de problemas, Ricardo Paes Mamede soma o dossiê do TTIP, as siglas em inglês do Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento. Mas exclui como determinantes as consequências da manutenção do impasse político espanhol se o resultado das eleições de 26 de Junho não alterar o equilíbrio das forças políticas. “A Espanha está relativamente distante de uma situação de emergência, embora uma clarificação, mesmo numa linha de não confrontação, poderia ajudar o debate actual na UE”, sublinha. Caso contrário, antevê outro cenário: “Com indefinição, a Espanha vai sentir pressão nas suas orientações que até agora não sentiu.”

Nesta agenda de dificuldades ainda há a divisão na UE sobre o conflito da Ucrânia/Rússia, com alguns parceiros a considerarem excessivas as sanções a Moscovo. E subsistem questões estruturantes, apagadas pela pressão dos acontecimentos. “A dependência energética da Europa face à Rússia”, recorda Miguel Morgado.

Existe um verdadeiro carrossel de dúvidas. “Multiplicam-se os sinais de arrefecimento da economia internacional, há sinais de que a zona euro vai responder com políticas orçamentais pró-cíclicas, como no passado, quando haveria que permitir investimento público e incentivos fiscais ao privado para que os países com melhores condições orçamentais gastem mais”, detalha Augusto Santos Silva. “Flexibilizar as regras pode ter efeitos contrários caso países como a Alemanha ou Bruxelas não vacilarem e não criarem espaço de flexibilidade para a Espanha ou a França”, contrapõe o parlamentar do PSD.

Crise dos grandes partidos

“Quando as urgências têm esta dimensão é natural que a atenção a um país pequeno como Portugal seja menor, o que não é bom”, pondera o deputado. “Estamos num período de racionalização das políticas europeias, a pensar em termos nacionais e não na União”, lamenta. “Temos países que se forem chamados a decidir sobre o resgate a um Estado-membro dirão que não”, antevê.

Com a Europa a pisar brasas, antecipar cenários é futurologia perigosa e irrealista. Vive-se num compasso de espera. “Pelo OE de 2016, e pelo que já se pode imaginar do de 2017, não há investimento público quanto necessário, simplesmente desapareceu, os projectos privados estão à espera de ver o que se passa na Europa e em Portugal”, retracta António Nogueira Leite.

“Devemos aproveitar esta bonança para continuar a resolver os problemas mas, tal como no passado, o país cansou-se e desinteressou-se deste caminho que começou ainda com o Governo anterior, com a dita saída limpa [do programa de assistência financeira da troika] em que o executivo se limitou a fazer gestão corrente, não muito mais do que ao, nível das contas, o actual está a fazer”, analisa o professor catedrático.

“A habilidade e a capacidade política de António Costa permitem estender no limite, na frente interna e externa, o beneplácito da pouca atenção que temos merecido, o que permite temporariamente tranquilizar as coisas”, admite Nogueira Leite.

Uma versão que, contudo, não é partilhada pelo “número dois” do executivo. “A ideia de que António Costa passa entre as gotas da chuva porque a senhora Merkel está preocupada com outras coisas não corresponde à realidade”, refere. “Não há um problema português, temos problemas mas não somos um problema, temos um crescimento medíocre e contas públicas em consolidação, mas não somos um problema para a Europa”, sustenta o ministro dos Negócios Estrangeiros. E realça o comportamento dos parceiros à esquerda da maioria parlamentar: “É notável a compreensão e inteligência política que o PCP e o Bloco de Esquerda têm demonstrado”.

Diferente é a visão de Miguel Morgado. “A mensagem dos extremos, da esquerda e da direita, quer a racionalização das políticas, em Portugal com a maioria, em França com Marine Le Pen e em Espanha com Podemos”, defende.

“Com as actuais lideranças, a Europa vai caminhar para o populismo, mais à esquerda em Portugal, mais à direita em França”, diagnostica o catedrático de Economia. “A velha democracia liberal de François Mitterrand, Helmut Kohl, Felipe González e Mário Soares está a ficar fora de jogo”, conclui Nogueira Leite.

É o que Carlos Gaspar define como o declínio dos grandes partidos, que estiveram no desenho institucional da Europa unida. Do impasse e paralisa em Espanha, à perda de estabilidade em Portugal, passando pela incerteza eleitoral nas presidenciais francesas de 2017, da radicalização à direita em Inglaterra e da estruturação da extrema-direita na Alemanha. “A crise dos grandes partidos é uma questão central da crise europeia”, conclui o investigador do IPRI.

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