Vencedora da Eurovisão: "Preferia que esta música não existisse"

A canção da artista ucraniana é um acto de memória sobre a deportação dos tártaros, em 1944, feita pela União Soviética. Jamala espera que o tema seja agora uma fonte de força.

Jamala festeja o triunfo na Eurovisão
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Jamala festeja o triunfo na Eurovisão AFP PHOTO / JONATHAN NACKSTRAND
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A australiana Dami In conquistou o segundo lugar
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A australiana Dami In conquistou o segundo lugar AFP PHOTO / JONATHAN NACKSTRAND
O russo Sergey Lazarev ficou em terceiro lugar
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O russo Sergey Lazarev ficou em terceiro lugar Maja Suslin/via REUTERS

Em 1944, cerca de 200.000 tártaros que viviam na região da Crimeia, então pertencente à União Soviética, foram deportados à força para a Sibéria, às ordens de Estaline. Milhares morreram. Uma das pessoas obrigada a sair do seu lar foi a bisavó da ucraniana Jamala, que cantou sobre estes acontecimentos em 1944, o tema vencedor do Festival Eurovisão da Canção, neste sábado.

“Preferia que todas estas coisas terríveis não tivessem acontecido à minha bisavó. Preferia que esta música não existisse”, disse a cantora, emocionada, na conferência de imprensa que se seguiu ao festival, na Suécia, depois de uma jornalista lhe ter perguntado o que é que Jamala gostaria de dizer à bisavó.

“Quando os estranhos estão a vir… / Eles entram em vossa casa / Matam-vos a todos / e dizem, / Não somos culpados”, ouve-se Jamala cantar em 1944. “Quis fazer uma canção sobre a minha bisavó Nazalhkhan e os milhares de tártaros da Crimeia que nunca mais puderam voltar à Crimeia, sobre o ano que mudou as suas vidas para sempre”, tinha explicado a cantora de 32 anos, numa entrevista dada em Fevereiro à AFP.

Dezenas de milhares de tártaros da Crimeia já tinham morrido nas décadas anteriores à deportação, sob o jugo soviético. Servindo-se da acusação de haver uma aliança dos tártaros com os nazis, Estaline ordenou em plena II Guerra Mundial a deportação dos restantes membros deste povo muçulmano de origem turca.

Entre 19 e 20 de Maio de 1944, os tártaros foram obrigados a sair das suas casas em minutos e foram postos em vagões de mercadorias, onde oito mil morreriam devido às más condições. A família de Jamala foi “enfiada num vagão de mercadorias, como animais, sem água, sem alimentos e enviada para a Ásia Central”, contou a artista.

A bisavó foi sozinha com os quatros filhos e uma filha, enquanto o marido estava a lutar ao lado do exército soviético contra os nazis. A filha foi uma das pessoas que morreu durante a viagem. “O seu corpo foi atirado do vagão como se fosse lixo”, referiu a cantora. “Eu precisava” desta canção “para me libertar” desta dor e prestar homenagem “a esses milhares de tártaros da Crimeia”, disse à AFP.

Nas votações de sábado, a canção recebeu 534 pontos, ficando à frente do tema da australiana de Dami Im e da canção russa, de Sergey Lazarev, que ficou em terceiro lugar com 491 pontos. “Tinha a certeza que se alguém canta e fala com verdade, isso emociona as pessoas. E estava certa”, referiu a vencedora na conferência de imprensa.

Agora, a artista espera que 1944 possa ser uma fonte de força para outros. “Sei que esta dor [fez parte de] todas as pessoas que viveram as suas próprias tragédias no passado, como o Holocausto”, afirmou. “Quando estive a preparar-me para esta actuação, ouvi a banda sonora do filme A Lista de Schindler. Esta é uma composição incrível e extremamente poderosa, gostava que 1944 tivesse o mesmo poder.”

Petro Porochenko, Presidente da Ucrânia, deu os parabéns à cantora no Twitter: “Uma prestação e uma vitória incríveis! Toda a Ucrânia envia-te um grande obrigado, Jamala!”

Só após a queda da União Soviética é que os tártaros puderam regressar à Crimeia. Centenas de milhares fizeram-no. Em 2014, o Ocidente viu a Rússia anexar a Crimeia, alimentando ainda mais a tensão que já se vivia na região. Em 2015, o Parlamento ucraniano reconheceu a deportação de 1944 como tendo sido um genocídio – uma resolução que espera por aprovação internacional.

Se a tradição se mantiver, a próxima edição do Festival da Eurovisão será no país vencedor, ou seja, na Ucrânia. Uma jornalista perguntou à cantora se queria que o festival de 2017 fosse feito “numa Crimeia livre”. Depois de uma edição particularmente política, Jamala, que tinha pedido “paz e amor para toda a gente” quando recebeu o troféu, respondeu cautelosamente: “Espero que a Eurovisão seja na Ucrânia. Não sei onde, mas obviamente na Ucrânia.”

Entretanto, vários responsáveis políticos russos já reagiram, criticamente, à vitória ucraniana no festival. "Não foi a cantora ucraniana Jamala e a sua canção 1944 que ganharam a Eurovisão de 2016, foi a política que bateu a arte", disse o senador russo Frantz Klinsevitch, apelando a que o seu país boicote a próxima edição do festival. Já o presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros do Senado russo, Konstantin Kossatchev, disse na sua página na rede social Facebook, que esta vitória e facto "geopolítico" podem comprometer o tenso processo de paz na zona leste da Ucrânia - "por isso, a Ucrânia perdeu" e "foi a guerra que ganhou". Também o jornal Komsomolskaia Pravda defendeu, num artigo de opinião, a anulação dos resultados da final de sábado devido ao teor "político" de 1944. O título do artigo é "Como o júri europeu roubou a vitória a [Sergey] Lazarev", o concorrente russo.

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