O medo

A confiança no progresso - entendido este de forma não simplista - ainda é o melhor antídoto para vencer as tentações reaccionárias, tenham estas a coloração que tiverem.

1. O medo, com o seu efeito inibidor e paralisante, parece estar a apoderar-se das sociedades contemporâneas. Os grandes pavores medievais que a época moderna desvalorizou e caricaturou regressam sob novas roupagens, adequadas às características do tempo que atravessamos. Na verdade, por todo o lado, e de distintas formas, o homem contemporâneo manifesta o seu profundo medo: medo da ciência e da técnica; medo da economia e da política; medo do outro e da mudança; medo do universal e do particular.

O medo corrói a representação do futuro, favorece o desânimo moral, promove o criticismo radical e inconsequente. A partir de certa altura adquire uma expressão mórbida. O mundo ocidental, e em particular a Europa, parecem particularmente permeáveis à disseminação deste sentimento. Nunca apreciei as teorias do declínio ocidental, quase sempre fundadas na contestação da linha de orientação mais fecunda dos tempos modernos: o projecto de emancipação iluminista baseado no enaltecimento da razão crítica, do indivíduo e da universalidade. De Oswald Spengler até aos autores ostensivamente reaccionários do presente constata-se a mesma preocupação de atacar a herança das Luzes. Alguns pensadores liberais sucumbem a idêntica tentação − no que, curiosamente, se aproximam de alguns teóricos de inspiração marxista radicalmente desconfiados da razão na sua versão ocidental. Estabeleço uma distinção em relação às teses desconstrutivistas ou de pendor genealógico que tanto marcaram a segunda metade do século XX, as quais não podem ser sumariamente identificadas com qualquer apologia básica do irracionalismo. A verdade é que o medo, agora tão abundante, radica inconscientemente num caldo de cultura não muito distante do que origina aquelas teorias pessimistas e catastrofistas. Senão vejamos: o princípio da precaução é elevado até patamares incompreensíveis de desconfiança perante o avanço do conhecimento científico; o deslumbramento infantil com a evolução tecnológica rapidamente se transforma numa não menos imatura obsessão tecnofóbica; assiste-se a uma simultânea execração da liberdade económica e da autoridade política; incentiva-se o diálogo intercultural e cede-se frequentemente ao proteccionismo económico.

Tudo isto significa que serão tumultuosos os tempos que aí vêm, o que não tem que ser necessariamente negativo. As profundas contradições que nos envolvem darão origem a clarificações não lineares mas nem por isso destituídas de grande interesse e importância. Por muito que a ideia de progresso tenha entrado em crise nalguns momentos trágicos do século XX, ela não pode ser radicalmente abandonada. A confiança no progresso − entendido este de forma não simplista − ainda é o melhor antídoto para vencer as tentações reaccionárias, tenham estas a coloração que tiverem.

2. A União Europeia e os países do Mercosul (com excepção da Venezuela) recomeçaram ontem um processo negocial que se arrasta há quase 17 anos com vista à celebração de um acordo de associação entre as duas partes. O momento está longe de ser auspicioso e os motivos de inquietação abundam. Nos últimos meses instalou-se uma tendência pró-proteccionista na opinião pública europeia, em grande parte resultante do receio instigado pela perspectiva de concretização de um acordo comercial com os Estados Unidos da América. Estamos uma vez mais diante de um caso concreto em que o medo puro e simples ocupa o lugar de uma avaliação razoável do que está efectivamente em causa. Esse medo não surge do nada. Pelo contrário, emerge de uma antiga desconfiança em relação ao mundo americano e alimenta-se de uma propaganda catastrofista que tem nos extremismos de esquerda e de direita os seus principais intérpretes. Tudo vale no intuito de desqualificar a negociação em curso: a desinformação, a deturpação ligeira, a mais insidiosa mentira. É a isto que temos assistido, sem que os principais responsáveis políticos venham a terreiro defender de forma devida as posições que até há pouco tempo proclamavam. Salvam-se dois líderes: Barack Obama e Angela Merkel, não por acaso os mais marcantes governantes do presente.
É claro que estamos a falar de um acordo complexo, de uma negociação difícil, envolvendo temas de inequívoca relevância em domínios tão importantes como o ambiente, a saúde pública e a protecção de direitos sociais. Temos o direito de exigir da parte das autoridades europeias uma atitude negocial firme tendo em vista a salvaguarda de valores e interesses que consideramos indiscutíveis. O que não é aceitável é a contestação demagógica do processo negocial em si mesmo ou o desfalecimento covarde de quem tem a obrigação de afirmar publicamente convicções e linhas de orientação que, em consciência, se consideram coincidentes com a promoção do interesse público.

Regressando à questão do Mercosul, seria bom que aos interesses legítimos mas muito particulares de sectores muito específicos da economia europeia se sobrepusesse o interesse mais geral do reforço do relacionamento com uma região do mundo a que nos ligam profundíssimos laços culturais e políticos, e que tem uma enorme importância do ponto de vista económico. Não faz aliás qualquer sentido que a União Europeia tenha já acordos comerciais com diversos países sul-americanos mas se não disponha resolutamente a concretizar este que tem uma dimensão substancialmente mais vasta. Uma coisa é certa, se os europeus falharem alguém ocupará rapidamente o seu lugar. Os Estados Unidos da América e a China não perderão decerto uma oportunidade dessas. A geopolítica e a geoeconomia têm as suas próprias leis da física.

NOTA: Onde estava escrito, por lapso do autor, "racionalismo", passou a estar, como devia, "irracionalismo".

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