O morto do senhor Puiu e os mitos do senhor Guiraudie

Uma família presa no seu labirinto: a casa. Um grupo de personagens a darem a volta ao seu mundo. Tão diferentes, o romeno Cristi Puiu e o francês Alain Guiraudie foram os primeiros – e idiossincráticos – sinais na competição de Cannes.

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Sieranevada filmado quase sempre dentro de um apartamento dr
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Sieranevada 2016 MANDRAGORA – PRODUKCIJA 2006 SARAJEVO / STUDIOUL DE CREATIE CINEMATOGRAFICA
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Rester Vertical THIERRY VALLETOUX
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O realizador Cristi Puiu em Cannes AFP PHOTO / ALBERTO PIZZOLI
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Cristi Puiu, Mimi Branescu e Dana na conferência de Imprensa de Sieranevada REUTERS/Eric Gaillard
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Cristi Puiu com a produtora Anca Puiu, a actriz Dana Dogaru e o actor Mimi Branescu AFP PHOTO / ALBERTO PIZZOLI
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Alain Guiraudie ao lado dos actores Sebastien Novac, Raphael Thiery, India Hair, Damien Bonnard, Christian Bouillette, Laure Calamy e Basile Meilleurat AFP PHOTO / ALBERTO PIZZOLI
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A actriz francesa India Hair que entra no filme Rester Vertical AFP PHOTO / Valery HACHE
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O actor Alain Guiraudie durante a conferência de imprensa do filme Rester Vertical AFP PHOTO / LOIC VENANCE
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O actor francês Damien Bonnard na conferência de imprensa de Rester Vertical AFP PHOTO / LOIC VENANCE

A câmara que observa, nos filmes do romeno Cristi Puiu, está colada à morte. Era essa a sensação em Aurora, um dos grandes filmes de Cannes 2010 (secção Un Certain Regard). Grande não porque durava três horas, mas porque estava ali para detectar os sinais de estranheza enviados pelo corpo de um homem que parecia exterior à vida  como se se tivesse ausentado de si próprio, inclusive  e que só palpitava quando matava.

Eram três horas com um assassino que tinha o corpo de um bom gigante  personagem interpretada pelo próprio Puiu. Em Sieranevada, a quarta longa-metragem do realizador de A Morte do Senhor Lazarescu (Prémio Un Certain Regard em Cannes 2005) que chega agora à competição principal do festival, a câmara está quase todo o tempo no hall de entrada de um apartamento.

Tem natureza esvoaçante, escuta o que se passa nas assoalhadas e apanha os restos de narrativas, “sabendo” de antemão da confusão que por ali anda naquela família que estrebucha no seu labirinto, que faz comida, põe e levanta a mesa mas nunca come, que discute incessantemente, tentando actualizar a memória mas nunca chegando a uma verdade definitiva: nem sobre as infidelidades e mentiras com que cada um construiu a sua ficção (as mulheres tremendamente ásperas e fortes, os homens mais frágeis, dóceis quando não mesmo pusilânimes), nem sobre o que se passou no dia 11 de Setembro ou no atentado ao Charlie Hebdo, nem sobre, já agora, a versão da História do comunismo que é a certa para fixar  exactamente como se passou com o romeno Puiu, que aos 23 anos, quando caiu o Muro de Berlim, viu desaparecer uma História oficial e darem-lhe uma nova versão dos factos.

Juntaram-se, neste apartamento, os membros de uma família para um ritual romeno: os 40 dias do passamento de um ente querido, a homenagem que lhe fazem. O realizador diz que a câmara, em Sieranevada, tem o olhar desse morto. Isso é tudo em Sieranevada: é presença totalitária, um filtro de leitura moral e metafísico que está sempre a dizer ao espectador que não há respostas quer dizer, nas duas ou três vezes em que estamos com as personagens fora do apartamento, o que se passa, o ruído, a ameaça de caos e de violência, diz-nos, diz-lhes, que não há saída, e eles tratam logo de regressar ao seu labirinto que só é aparentemente protector porque lhes confina os limites do mundo e lhes permite uma versão mais familiar da violência.

Sieranevada não é tão grande filme como Aurora não porque não chega às três horas (só as ronda), mas porque se instala, com a sua hiperconsciência, e de forma inamovível, no espaço e no tempo de uma demonstração. Como se tudo estivesse ao serviço de uma tese (a câmara), com as personagens a serem utilizadas, uma e outra vez, para a demonstração – a redundância está no filme, Puiu não encontra alternativa a ela e dir-se-ia que não sente necessidade de fugir dela. Mas o que ele consegue com os seus actores, as possibilidades de trabalho que se adivinham que ali foram desencadeadas, são de espantar  e, tal como com tudo o que acontece dentro do filme, nunca poderemos saber ao certo o que se passou por ali.

Falhanço poético

Não podia ser mais diferente Rester Vertical, com que um dos responsáveis por um dos acontecimentos de Cannes 2013, Alain Guiraudie (O Desconhecido do Lago, na secção Un Certain Regard), é “promovido” à competição principal. Paternidade homoparental, eutanásia, a protecção das espécies animais em extinção... podiam-se elencar os “tópicos”, mas Guiraudie passa por eles não com a hiperconsciência de Puiu, mas com o tremor vacilante e sempre maravilhado (e desconcertante) de quem partiu à descoberta da matéria de que os mitos são feitos e se encontrou.

O Desconhecido do Lago tinha sido um filme importante no percurso de Guiraudie: interrompia as manobras de evasão e fantasia dos filmes anteriores, em que as personagens calcorreavam o mundo dos mitos. Era um filme que se imobilizava frente a um lago e, deixando de espantar fantasmas, encarava nu, de frente: o sexo homossexual (que pela primeira vez explicitava), a morte, e o desejo, e o amor no mundo pós-sida. A vertiginosa quietude desse filme era um espelho para o espectador, para o seu desejo e o seu medo. Com Rester Vertical, Guiraudie regressa a personagens que parecem estar a dar a volta ao (seu) mundo  aqui há um realizador que tenta acabar o seu argumento e encontrar um rosto e um corpo para o filme, “viagem” essa que, sendo povoada por castelos, lobos e um bebé, nunca anuncia com um cartaz as zonas por onde está a entrar.

Mas perante aquilo que o realizador avançara em O Desconhecido do Lago, Rester Vertical faz figura de retrocesso (ao registo de O Rei da Evasão, de 2009, por exemplo). Tudo nos fala, por isso, de forma muito menos abissal – e menos desconcertante – do que em outros filmes de Guiraudie. Colocá-lo na competição de Cannes foi, claro, um gesto dos programadores que veio na sequência de O Desconhecido do Lago. Que o cineasta não tenha cumprido as expectativas que esse filme certamente gerou não deixa de ser uma espécie de falhanço poético – comunica à competição uma fragilidade e um risco a que poucas vezes ela se atreve.

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