É misantropo andar por entre a gente

O encenador Nuno Cardoso faz novamente prova dos seus talentos, nesta peça que está até domingo no São Luiz, em Lisboa.

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Nelson Garrido

Nada como o Misantropo, de Molière, para encavacar o crítico. De facto, a sobranceria e desdém que a figura recriada pelo mais famoso dos dramaturgos, directores e actores franceses (a partir da figura original da peça de Menandro, do séc. IV A.C.) serve como uma luva no perfil desse espectador renitente que é o indivíduo pago para escrever sobre o teatro que viu, criticando-o. E que regalo para a autocrítica, neste caso, é o misantropo Alceste encarnado por Luís Araújo, sobranceiro e fofo ao mesmo tempo (ou não levasse consigo para todo o lado o burro Bisonho do Ursinho Puff), rodeado por uma corte de adoráveis ridículos, cuja prática da má-língua revela afinal a carência de afectos e uma grande falta de atenção, provando que, neste mundo, só não é amado quem não se quer deixar amar.

O espectáculo expõe muito bem o egotismo de todos e qualquer um, e a relação do culto do ego com um certo bom gosto, bon chic, bon genre das classes dominantes — o elitismo de trazer por casa, mais ou menos etílico, de quem se aborrece com a populaça e cultua a sensibilidade. Enquanto os demais ainda se divertem com as intrigas palacianas do reality show que é a corte, a arrogância de Alceste impede-o de tolerar sequer os códigos hipócritas dos salões burgueses. Antes só que mal acompanhado, podia ser o lema deste homem; mas o que essa aparente dignidade revela é apenas uma grande incapacidade de lidar com os outros, a menos que os outros lhes façam as vontades todas. E mesmo assim. Alceste, como Otelo, não concebe a mentira, nem uma opinião diferente da sua. Digamos que é mais papista que o Papa, e mais presidencialista que parlamentarista. No fim, Alceste fica mesmo sozinho, com o seu fetiche de pelúcia, enquanto a sumptuosa Celimena de Joana Carvalho lhe escapa por entre os dedos. A festa continua.

Nuno Cardoso, mais uma vez, acerta na mouche do Zeitgeist — na mosca do espírito dos tempos, apanhada não com vinagre, mas com o famigerado teatro de repertório, quer dizer, o conjunto das peças que sobreviveram ao passar dos tempos, por tanto os actores como os encenadores se deliciarem com o funcionamento dos seus dispositivos; e o público com vê-los a funcionar, permitindo-se examinar os próprios comportamentos, não em tempo real, mas no tempo ritual do espectáculo de teatro. O encenador faz novamente prova dos seus talentos, arregimentando um bando dos mais luminosos actores da cidade, num concerto de talentos, orquestrados com gozo e galantaria, para render homenagem ao autor, à primorosa tradução de Alexandra Moreira da Silva e à própria ideia de tempo e ritmo da comédia, ao mesmo tempo que desfere uma crítica contundente aos costumes da sociedade pós-moderna, que nisto não diferem muito dos da moderna, nem da antiga, pelos vistos.

Apresentado em complemento à estreia da peça no Porto, o monólogo em que Nuno Cardoso actua, O Subterrâneo, de Dostoiévski, dirigido precisamente por Luís Araújo, faz a ligação com um certo estilo contemporâneo de condescendência electrónica, aquele de quem prega sermões a toda a hora, com gráficos e quadros para mostrar mais-valia digital, vendendo a banha da cobra tecnológica que todos querem comprar. Como exercícios de filosofia em cena, estas obras merecem ser vistas e revistas.

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