Caminhar no escuro

Talvez a maior força do livro seja o desconforto profundo que causa no leitor perdido, que não sabe o que pensar porque as pistas que recebe são escassas.

Foto
Este não é um romance de enredo: é um romance de linguagem e de estilo, de episódios cumulativos e de muitos enigmas Rune Hellestad/Corbis

Não há nenhuma personagem de que se goste, de caras, em Uma rapariga é uma coisa inacabada, de Eimear McBride (n. 1976). Esta falta de empatia, aliada a um estilo narrativo peculiar e difícil de acompanhar, poderiam fazer deste romance de estreia uma obra falhada. Contudo, a obra aguenta-se, resiste à resistência do leitor e, através de uns quantos golpes precisos e eficazes, acaba por dominá-lo e levar a melhor.

Aconteceu o mesmo com os editores. O livro foi escrito quando a autora tinha 27 anos e foi rejeitado inúmeras vezes por inúmeras editoras. Foram necessários dez anos para que fosse aceite e publicada. Depois veio o prémio Baileys Women’s Prize for Fiction, o antigo Orange Prize, onde bateu a concorrência onde constavam nomes tão conceituados quanto Donna Tartt, Jhumpa Lahiri e Chimamanda Ngozi Adichie.

McBride referiu já em entrevistas que foi a leitura de Ulysses, de James Joyce, que a libertou das amarras daquilo que escrevia até então. Nascida em Inglaterra, filha de pais irlandeses, McBride regressou com a família à Irlanda ainda em criança e foi no mestre irlandês que encontrou o caminho para o que queria fazer. Seguiram-se seis meses de escrita intensiva, de que nasceria este Uma rapariga é uma coisa inacabada.

Essa suposta compulsão da escrita sente-se na leitura. Somos empurrados aos solavancos por uma urgência de algo que não se percebe o que é. Porque este não é, de todo, um romance de enredo: é um romance de linguagem e de estilo, de episódios cumulativos e de muitos enigmas. Talvez se o livro fosse mais fluxo de consciência (como algumas pessoas o têm caracterizado) não restassem tantas pontas por atar, mas não é esse o caso. Há uma narradora na primeira pessoa, sim, mas o que ela narra é muito menos o que pensa e sente do que aquilo que acontece e vê e ouve.

Nenhuma das personagens principais tem nome. A narradora começa por ser criança, passa rapidamente para a adolescência e, na maior parte do romance, é já uma jovem adulta. Depois há o seu irmão mais velho, que teve um tumor no cérebro quando era uma criança, que poderá ou não ter deixado sequelas na sua capacidade cognitiva, e a mãe, fervorosa católica. O pai abandonou a família pouco depois do nascimento da protagonista. Por último, há um tio afectivo, marido da irmã da mãe.

O romance vive do conflito. Há um choque de ideais e de comportamentos entre a religiosidade da mãe e a rebeldia da filha. Com o irmão, a relação é mais difícil de categorizar: há momentos de amor e empatia e outros de conflito. No fundo, a narradora está sozinha contra o mundo, está perdida e procura um rumo sem saber que rumo deseja. E depois aparece o tio pela primeira vez, quando ela tem 13 anos, e abusa sexualmente dela. Este é o primeiro grande baque que desencadeará os restantes.

A linguagem de McBride, muito bem traduzida pelo poeta Daniel Jonas, fica um pouco aquém da história que conta, como se houvesse algum pudor em chamar as coisas pelos nomes. Mas é também dessa insegurança linguística que nascem as ambiguidades da obra. Depois do abuso do tio, a narradora entrega-se a colegas de escolas e homens mais velhos, numa espiral de relações sexuais cada vez mais violentas e degradantes, que nos perturbam, mas não tanto quanto deviam – cedo deixamos de perceber a moralidade de todas as acções e, como a reflexão da personagem é escassa, torna-se impossível discernir até que ponto há um conflito entre aquilo que faz e aquilo que quer fazer. Até que ponto é que os seus comportamentos são uma resposta à religiosidade da mãe? Até que ponto são uma consequência da violação por parte do tio?

Talvez esta seja a maior força do livro: o desconforto profundo que causa no leitor perdido, que não sabe o que pensar porque as pistas que recebe são escassas. Daí que tenhamos dito que não há personagens de que se goste de caras. É difícil gostar da mãe, na sua fervorosa e castradora fé; é difícil gostar do irmão, na sua apatia mal-educada; é difícil gostar do tio que tira partido de uma adolescente perdida. E é também difícil gostar da protagonista, que parece caminhar voluntariamente para a autodestruição.

Tudo isto é-nos servido em fragmentos de frases, interrupções, diálogos encavalitados pelos parágrafos, numa amálgama a que muitas vezes é difícil dar sentido. Este mecanismo não é perfeito, mas acaba por servir bem o propósito narrativo. Uma rapariga é uma coisa inacabada não teria a mesma força se fosse escrito de um modo mais convencional. Mas a liberdade narrativa, sempre salutar, acarreta os seus riscos e esta obra sofre por, em demasiadas ocasiões, forçar o leitor a caminhar no escuro. Ainda para mais, um escuro que se vai tornando repetitivo.

Sugerir correcção
Comentar