Há terrenos de particulares dentro do Autódromo do Estoril

Tribunal declarou nula a escritura em que a Autodril afirmava ser proprietária de todas as parcelas onde a infra-estrutura desportiva foi construída. Quase 44 anos depois da inauguração do circuito, o diferendo continua por resolver.

Foto
Herdeiros da família Reis reivindicavam a propriedade de três lotes de terreno no interior do recinto, localizados junto da Curva 3 da pista Nuno Ferreira Santos

Quase 44 anos depois da inauguração do Autódromo do Estoril, ainda não é clara a propriedade de alguns dos terrenos que foram ocupados por esta infra-estrutura desportiva. Uma sentença do 4.º Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Cascais, de Dezembro de 2013, a que o PÚBLICO teve acesso, deu razão aos herdeiros da família Reis, que reivindicavam a propriedade de três lotes de terreno no interior do recinto, localizados junto da Curva 3 da pista.

O alvo da acção foi a Autodril, empresa do universo do Grupo Grão-Pará, da empresária Fernanda Pires da Silva, que inaugurou o equipamento em Junho de 1972. Os herdeiros estudam agora a hipótese de avançar com uma providência cautelar para impedir a realização de provas desportivas motorizadas ou inviabilizar uma futura venda do equipamento que, entretanto, passou para a esfera do Estado e integra o portfólio imobiliário da Parpública, sociedade gestora de participações sociais de capitais exclusivamente públicos.

Para se perceber a história, é preciso recuar até ao ano de 1969, quando a Autodril – Sociedade do Autódromo do Estoril (SAE), S.A.R.L., ocupou todos os terrenos que se inseriam na área de construção da infra-estrutura desportiva, bem como as zonas circundantes, procedendo à terraplanagem e à construção das bancadas e da pista.

Nos anos anteriores, entre 1966 e 1967, a empresa do Grupo Grão-Pará havia adquirido à Ribalonga – Empreendimentos Urbanísticos, S.A.R.L., detida pelo empresário e industrial Lúcio Tomé Feiteira, uma área de terreno de 75 hectares, conhecida na altura como “Quinta de Santo António da Ribeira da Penha Longa”. Existiam, no entanto, alguns “enclaves” nesta propriedade que não pertenciam a Tomé Feiteira, entre terrenos baldios, outros municipais e os tais três lotes da família Reis.

Esta situação é, de resto, referida na escritura pública de compra e venda dos terrenos, assinada a 14 de Junho de 1974, a que o PÚBLICO teve acesso.

No documento, a Ribalonga, representada por Tomé Feiteira, alerta para o facto de existirem terrenos dentro da sua propriedade que não lhe pertenciam e para a necessidade de a Autodril – representada na escritura pelos filhos de Fernanda Pires da Silva, Abel Pinheiro e João Paulo Teotónio Pereira, falecido em 2001 – negociar os mesmos com os respectivos proprietários.

“A sociedade vendedora não assume qualquer responsabilidade no que se refere aos enclaves pertencentes a terceiros e compreendidos no referido perímetro, mas reconhece à compradora o direito de proceder a todas as diligências que entenda, quer com a Câmara Municipal de Cascais quer com particulares ou outras entidades, com o fim de os adquirir, e prontifica-se a prestar toda a colaboração de que a compradora necessite para a consecução de tal fim, sem que tais diligências possam trazer encargos de qualquer espécie para ela, vendedora”, pode ler-se no documento registado no 12.º Cartório Notarial de Lisboa.

Os actuais herdeiros garantem que os seus familiares só toleraram que a Autodril incluísse as suas propriedades no perímetro de protecção do autódromo, por terem iniciado “negociações e contactos” com a empresa, com vista à venda desse património – matéria factual que o tribunal considerou provada, apesar da contestação da Autodril, que declarou ter adquirido os prédios em questão “por compra e venda verbal”. Mas, segundo os herdeiros, nunca seria alcançado um acordo quanto ao valor a ser pago pelos imóveis.

O processo não iria conhecer mais desenvolvimentos até 1 de Outubro de 1997, quando a Autodril – SAE, por escritura pública, no 4.º Cartório Notarial de Lisboa, declara que “é dona e legítima possuidora” dos referidos prédios rústicos, que totalizam uma área total de 11.080 m2, e que teriam sido obtidos por usucapião (possibilidade de adquirir uma propriedade pela sua posse pacífica durante certo prazo de tempo).

A Autodril salientou ainda o facto de não constarem quaisquer titulares destes terrenos inscritos na respectiva conservatória e que efectuou “notificações judiciais avulsas a incertos”. Justificações que foram rejeitadas pelos herdeiros, alegando que os mesmos prédios estavam e estão inscritos na matriz predial rústica da freguesia de Alcabideche.

À data desta escritura, estava a ser constituída a Sociedade Gestora do Autódromo Fernanda Pires da Silva, no âmbito do Acordo Global rubricado com o Estado português. Um acordo que previa a liquidação das dívidas do Grupo Grão-Pará ao fisco, Segurança Social e Fundo de Turismo, por dação de bens em pagamento, no âmbito do Plano Mateus, que visava recuperar receitas fiscais em falta por parte das empresas.

Entre estes bens, estavam 51% das acções da sociedade imobiliária proprietária do autódromo, que passaram para o controlo do Estado, que em 2002 ficaria com a totalidade do capital social, adquirindo os restantes 49% que ainda estavam nas mãos do grupo imobiliário. Este património transitou depois para a Parpública, ainda hoje responsável pela gestão e exploração desta infra-estrutura desportiva, através da actual sociedade CE – Circuito do Estoril.

Face à escritura pública da Autodril, em Outubro de 1997, os herdeiros de Máximo José dos Reis e Maria da Conceição interpõem uma acção em tribunal em 1999, na qual pedem a declaração de nulidade da mesma e, em consequência, que “seja ordenado o cancelamento dos registos de aquisição dos identificados prédios” a favor da Autodril, assim como sejam “declarados nulos quaisquer outros correspondentes registos de aquisição” que esta empresa tenha celebrado, envolvendo os três referidos terrenos.

Em simultâneo, os herdeiros solicitam que sejam declarados como “os legítimos donos e possuidores dos prédios em questão, ordenando-se que os mesmos retornem à sua posse e propriedade”.

Particulares ganham em tribunal

Os descendentes da família Reis tiveram de esperar 14 anos, mas acabariam por ganhar a acção. A sentença, proferida em 4 de Dezembro de 2013, considerou provado que os herdeiros de Máximo José dos Reis e Maria da Conceição permitiram que a Autodril incluísse as suas propriedades no perímetro de protecção do Autódromo do Estoril, mas que só actuaram assim por terem iniciado negociações e contactos com a empresa do Grupo Grão-Pará, com vista à sua venda: “Apenas porque a ré sabia que os terrenos não lhe pertenciam e eram propriedade dos autores e seus sucessores é que adquire sentido que tenha negociado a sua aquisição.”

Na decisão, o tribunal declara impugnada a escritura de 1 de Outubro de 1997, considerando que a Autodril não poderia ter adquirido estas propriedades por usucapião, já que ela não ignorava que lesava os direitos dos herdeiros. Declara ainda ineficaz e sem qualquer efeito essa mesma escritura de justificação notarial, impedindo que a empresa ex-detentora do autódromo possa registar, através dela, quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado e ordena o cancelamento de quaisquer registos, tendo como base a mesma escritura.

Na mesma sentença, declaram-se “ineficazes e de nenhum efeito todas as transmissões efectuadas e correspondentes registos”, mais uma vez tendo por base a escritura de justificação, declarando os herdeiros da família Reis “donos e legítimos proprietários” dos referidos prédios.

Na sequência desta decisão desfavorável, a Autodril – SAE interpôs um recurso de apelação no início de 2014. O processo está, neste momento, na Comarca de Lisboa Oeste, Instância Local de Cascais, Secção Cível Juízo 4, que deverá decidir esta semana a admissão do recurso.

Contactos com Câmara de Cascais

Entretanto, com a sentença de primeira instância nas mãos, os herdeiros da família Reis iniciaram conversações com a Câmara Municipal de Cascais com vista à resolução do problema. A autarquia tinha acordado com a Parpública, em Agosto de 2015, um contrato de compra e venda do Autódromo do Estoril – mediante o pagamento de 4,921 milhões de euros, acrescidos de 1,96 milhões de euros referentes a suprimentos que o Estado injectara na sociedade detentora do circuito –, mas o negócio acabaria por ser chumbado pelo Tribunal de Contas (TdC), em Dezembro do ano passado.

Antes de o acordo ser inviabilizado, a autarquia recebeu o representante legal dos herdeiros, com quem procurou chegar a um entendimento. Os proprietários dos terrenos apresentaram uma proposta para a venda dos mesmos, pelo valor de 800 mil euros, considerada excessiva pela edilidade pelo facto de nada poder ser construído nos referidos imóveis. Mais tarde reduziram a verba para os 680 mil euros, mas foi conhecida, entretanto, a decisão do TdC e as conversações foram interrompidas.

O PÚBLICO tentou obter uma reacção da Circuito do Estoril – que, face ao chumbo do TdC, se manteve no universo da Parpública – sobre este processo, mas não obteve qualquer resposta do administrador da empresa gestora do autódromo José Manuel de Barros.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários