O escritor que aí vem

O leitor de jornais que ao fim-de-semana se dirige à última página do PÚBLICO para ler a crónica de Vasco Pulido Valente, encontra um aviso que adia a oração matinal: “Vasco Pulido Valente está a preparar um livro, a editar este ano. Retomará a sua coluna em Outubro”. É um aviso do mesmo tipo que encontramos nos estabelecimentos, para informação aos clientes: “Pedimos desculpa pelo incómodo, mas mudámos para a nº X da Rua Z”; ou então: “Fechámos provisoriamente para obras, reabrimos em breve”. Barthes escreveu, nos anos 50 do século passado, um texto que faz parte das suas “mitologias”, sobre o escritor em férias, fotografado ou entrevistado pelos jornais num momento de lazer e de futilidade, mas nem por isso alienado da sua nobreza e abandonado pelo seu prestígio. A “maravilhosa singularidade do escritor” é que a sua vocação é tão insistente, tão duradoura, que nem em férias ele deixa de ser escritor. Mesmo quando não produz, está a preparar-se para produzir. A mitologia do escritor em férias não se podia manter num mundo onde o próprio trabalho do escritor foi completamente dessacralizado. Mas se não é possível actualizar a mitologia do escritor em férias, pode-se tentar remitologizar o escritor em plena laboração. É isso que faz o insólito aviso do PÚBLICO, que convida o leitor à reverência perante quem se retira a prazo para cumprir uma missão muito mais nobre. Vasco Pulido Valente é cronista e escritor, mas quando não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo o cronista cala-se para que se oiça o escritor, mesmo que ainda esteja imerso no seu silencioso trabalho. O aviso diz-nos que se consumou esse sacrifício simbólico e que este tem uma duração determinada, no calendário profano: até Outubro, que marca o fim de um tempo e o início de outro. Se não fosse o aviso, o leitor poderia conjecturar que o cronista tinha ido em férias, ou que tinha entrado num shabat prolongado, ou que estava doente, ou que se tinha retirado por qualquer motivo. Ele, que é historiador, poderia ter-se tornado numa figura pós-histórica, que alguma literatura do século XX consagrou e à qual um escritor surrealista francês chamou voyou désoeuvré. Como traduzir isto? Talvez “vadio ocioso”, ou inoperoso, se quisermos utilizar uma palavra um pouco estranha, mas talvez a mais adequado para designar alguém que não faz obra. Mas não, não é de désouvrement que se trata, é exactamente o contrário. E é para isso que está lá o aviso, ainda que ele encerre uma contradição performativa: é um estranho ruído de última página para dizer que alguém passou ao estado de silêncio. Como um escritor que narra com eloquência a sua impossibilidade de escrever. O escritor precisa desse silêncio para fazer obra, mas a obra precisa de ser esperada sobre a terra. E o cronista precisa de ser esperado na última página pela rentrée. Não é um meteoro que escapa às lentes mais potentes, não é uma estrela que escolheu a auto-extinção, é um cometa que vai passar na nossa órbita na data indicada pelo jornal. Noutros tempos, os cometas anunciavam o fim dos tempos. Em 1910, a passagem do cometa Halley foi motivo de grandes profecias apocalípticas, que não se consumaram de maneira visível, mas que alguns apurados sismógrafos conseguiram detectar. É o caso do poeta Gottfried Benn, que disse que “1910 foi efectivamente o ano em que todos os andaimes começaram a ruir”. Para as metáforas da destruição tem o nosso cronista uma acentuada tendência. Mas, até Outubro, ele será esperado e celebrado como construtor. Outubro não será ainda o tempo do fim, mas será o fim de um tempo.  

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