Vozes de Chernobyl: postais da “Meca nuclear”

“Vozes de Chernobyl” de Svetlana Alexievich, Prémio Nobel de Literatura de 2015, capta as vozes da “rua” com sensibilidade de “Rabelais” da rua contaminada

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Gleb Garanich/Reuters
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Chernobyl “serve para produzir filósofos”. A declaração, sem dúvida perspicaz, é de um homem que vagueia por Khóiniki, nas proximidades da Zona de exclusão de Chernobyl, citado em “Vozes de Chernobyl”, o livro mais emblemático da escritora bielorrussa Svetlana Alexievich. Para além dos terríveis efeitos ambientais conhecidos, a “nuvem radioactiva cultural” da explosão, segundo a expressão feliz da antropóloga Sharon Stephens, teve impacto profundo na consciência cívica, no activismo político e na percepção do “risco”.

Chernobyl “produziu” também “chernobylianos”. Aos milhares, em horas. Ser-se “chernobyliano” corresponde agora a uma nova camada identitária transnacional em que muitos bielorrussos, ucranianos e russos, aparentemente, se reconhecem eles próprios ou são reconhecidos por outros. Nas escolas, as crianças vindas de Chernobyl eram “pirilampos” e “ouriços de Chernobyl”, apodos que aludiam a efeitos imaginados da contaminação radioactiva. Perseguidos pela sombra de Chernobyl, vários regressaram ilegalmente à “Zona”, onde, avaliados os riscos, conseguiam pelo menos proteger-se da condição de estranhos, indesejados ou objectos de curiosidade permanente.

Nessa medida, são de “chernobylianos”, na sua maioria, os depoimentos que constituem "Vozes de Chernobyl". O livro combina extractos de 107 das mais de quinhentas entrevistas que Svetlana Alexievich realizou na primeira metade da década de 1990, com um mínimo de intervenção da autora. São relatos na primeira pessoa a que Alexievich chama “monólogos”, uma grande colagem de testemunhos que constitui uma variante rara do famoso projecto benjaminiano de livro de citações.

Em contraponto àquelas “vozes solitárias”, três secções apresentam depoimentos conjuntos de vários entrevistados. Estes “coros”, como a autora designa as — digamos — vozes colectivas, contêm declarações avulsas que produzem o efeito de pequenas colecções de aforismos. Como recursos e metáforas dramatúrgicos utilizados por uma jornalista com passado no teatro (monólogos, coros e ainda as didascálias com que introduz testemunhos ou regista comportamentos não-verbais), parecem sugerir “Vozes de Chernobyl” como uma espécie de trágica representação teatral que foi primeiro interpretada e só depois escrita.

Talvez a proximidade da efeméride dos 30 anos do desastre de Chernobyl, assinalada no passado dia 26, tenha inspirado e acelerado o reconhecimento raríssimo na história do Nobel de Literatura de uma obra de “não-ficção”. Entre classificações propostas pela própria autora e por críticos, as categorias tentadas para se arrumar a obra singular de Alexievich parecem submissões a um concurso de originalidade: “documentários literários”, “romances documentários”, “não-ficção narrativa”, “ficções factuais”. Vale a pena reter as menções ao documentário, porquanto talvez o cinema directo, sem narração “off” e com ênfase no processo de edição de muitas horas de recolha, seja boa referência comparativa. De resto, classificar enquanto “monólogos” os depoimentos recolhidos representará um esforço de supressão da figura do entrevistador, como se Alexievich pretendesse convencer tratar-se de uma “mosca na parede”.

O horror! O humor!

Na capa da versão portuguesa figura uma imagem emblemática das consequências do “acontecimento-monstro” de 1986. A roda-gigante num parque de diversões da cidade de Pripyat, abandonada há trinta anos, é um despojo já famoso, convertido em alegoria da precaridade da existência humana e das  suas realizações materiais. Como outras imagens poderosas que circulam de Pripyat, em que estruturas são consumidas pela acção do tempo e invadidas pela “natureza vingativa”, como dirá Bruce Sterling, evoca cenários especulativos de futuro pós-humanidade: “O que lembramos mais de Chernobyl é a vida depois de tudo: as coisas sem o homem, as paisagens sem o homem. O caminho para o nada, cabos para o nada. Chega-se a duvidar, o que será: o passado ou o futuro?” (p. 56).

Por ironia, a “Zona” é hoje uma bolsa de natureza na região. O lince-euroasiático regressou à área, onde não era avistado desde ainda antes do desastre. Na quase ausência de presença humana, a fauna e a flora prosperam como numa utopia de gestão conservacionista. A “Zona” é citada como um exemplo acabado daquilo a que Sterling chamou de “parques involuntários” — reservas naturais espontâneas, por assim dizer, que germinam em territórios desertados por populações humanas.

Desde a catástrofe, Chernobyl converteu-se em central de produção de imagens de horror. Um tema saliente em “Vozes de Chernobyl” é a abundante mitologia sobre a “Zona”. Ouriços carecas, ratazanas ruivas, galos com cristas pretas, javalis com três cabeças, pássaros com dois bicos, cogumelos do tamanho de uma cabeça humana e outras “mutações” povoam um bestiário de seres fantásticos que se constituiu no imaginário popular.

Para os “chernobylianos” foi rápida a chocante incorporação do horror como parte da experiência quotidiana e das expectativas de futuro. No dia-a-dia, o dosímetro era um objecto de uso comum, contando-se "roentgenes" como quem contabiliza calorias. A “epidemia” de apolecia — crianças sem cabelo, sobrancelhas e pestanas são imagens consabidas dos efeitos duradouros da contaminação radioactiva — sugere angústias da maternidade que o argumentista de "Aliens" não desdenharia.

Num dos relatos mais pungentes do livro, destacado em capítulo próprio, uma “voz solitária” descreve a experiência de acompanhar o processo veloz que transformou uma “pessoa amada” — o marido, dos primeiros “liquidadores” a acorrerem ao incêndio no reactor 4 da central — em “objecto radioactivo”. Em outro, uma criança sossega a mãe, dizendo-se preparada para aceitar um filho que nasça “monstro”. Esta era uma preparação já em curso que incluia visitas regulares a um bebé vizinho, que se diria nascido com “sorriso” de orelha a orelha se o desafortunado não tivesse apenas uma. Num contexto dominado por sensações de irrealidade e choque, uma antiga habitante de Pripyat recorda o sentimento estranho de se sentir espectadora dela própria durante a evacuação: “Não me largava a sensação de que nada daquilo me acontecia a mim, mas a alguém que não eu” (p. 219).

Por tudo isto, talvez um leitor desavisado se espante que “Vozes de Chernobyl” esteja carregado de anedotas, de humor negro que afronta a morte, a desgraça própria, os costumes e o poder. Veja-se, por exemplo, esta: “Se não há festa, a vida não presta...Uma ucraniana vende no mercado grandes maçãs vermelhas: ‘Quem quer maçãs? Maçãs de Chernobyl!’ Alguém aconselha: ‘Ó mulher, não digas que são de Chernobyl, que ninguém tas compra.’ ‘Não se preocupe! Então não compram! Há quem compre para a sogra, há quem compre para o chefe’” (p. 78).

Uma das virtudes de Alexievich, aqui bem ilustrada, está precisamente em conseguir captar as vozes da “rua” com sensibilidade de “Rabelais” da rua contaminada. É de lá que as “vozes” enviam estes postais da “Meca nuclear”, como os “criativos” das agências turísticas, sem consciência da ironia própria, passaram a classificar Chernobyl, na ânsia de converter a desgraça em “valor”.

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