O Leicester como David e a EDP que só rende aos outros

Se as vidas são cada vez mais globais e se os heróis que ontem eram gente humilde sabem como ganhar sem os meios dos grandes e poderosos, tenho direito a reclamar Jamie Vardy e Claudio Ranieri para o Governo de Portugal. Ou não tenho?

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Reuters

David venceu Golias. Verdade, lenda, fábula ou mera inspiração literária, não há humano — dos escuteiros aos cadastrados sanguinários — que não se emocione com a história de um qualquer humilde, pobre ou mais fraco que vença em nome da Justiça e, sobretudo, derrote um poderoso. Melhor ainda se for um poderoso paladino de uma qualquer tirania.

Nos dias de hoje, os tiranos não têm rosto. São os mercados, as ambições, os números, as fórmulas pretensamente invencíveis nos cálculos de Excel que dizimam empregos, direitos conquistados com o sangue dos outros ou políticas de bem-estar para as quais, dizem, não há solvência.

Hoje, apesar de ser um dia bonito, carrego pesarosamente a certeza de que sempre que ligamos uma lâmpada, um forno ou uma televisão, os tostões pingam a uma velocidade desmedida nos cofres do Estado chinês.

Escrevo Estado de propósito. Podia só ter dito China. Mas, neste caso, o conceito Estado tem relevância, pois foi o nosso Estado — o português — que vendeu a EDP ao chinês, e em modelo de saldos. Vejamos: o Estado chinês factura 400 mil euros/dia com um negócio que os nossos governos entenderam que não deve ser um Estado a gerir… Entre os vários argumentos e desculpas, o mais irónico é meterem na cabeça dos portugueses que “não é da competência do Estado gerir negócios desta dimensão” ou “o Estado não tem gestores competentes para negócios desta dimensão”. É bem verdade, pois, pelos vistos, o Estado português não tem competentes (governativos) para se gerir a si próprio. E, no entanto, escolhemo-los de quatro em quatro anos… Um quarto da EDP pertence à China. Desde 1997 que os anéis foram colocados no “prego” e por lá ficaram, ao desbarato, após oito momentos de privatização aos bochechos, até à derrota final. Tudo vendido a empresas de Espanha, dos EUA, do Qatar, de Abu Dhabi, da Argélia da Noruega e até de Angola (através do BCP, o maior banco privado “português”).

Ora, se um quarto vale, diariamente, 400 mil euros, presumo que a receita diária da EDP valha cerca de um milhão e 600 mil euros. Agora multipliquem por 365 dias… Bem sei que há despesas a contabilizar e serviços de empresas portuguesas a serem pagos por toda aquela gente. Mas, se lhes dá dinheiro a eles, porque não nos dá a nós?

A resposta é demasiadamente simples, pelo que nem sequer me arrogo ao ponto de a escrever. Afinal, o que tem isto a ver com Davides e Golias? Não, melhor!

Afinal, o que tem isto a ver com o goleador Jamie Vardy, que há cinco anos trabalhava numa fábrica, entre os treinos enquanto amador de futebol, e o seu Leicester, inesperado campeão inglês? Como David, Vardy foi o herói de um exército de humildes. Gosto de imaginá-lo escaqueirar as defesas contrárias como Cristo escaqueirou as mercadorias dos vendilhões do templo; gosto de imaginá-lo a fintar defesas como o Che a desbaratar as tropas do regime fascista de Fulgencio Batista (até rima!); gosto de imaginar os seus companheiros menos mediáticos como Salgueiro Maia de peito aberto diante dos tanques da “outra senhora” nas cercanias do Rossio.

Hoje, horas depois da celebração da equipa que, na época anterior, lutava para não descer, já todos escreveram de forma romântica ou em mero “futebolês” sobre o feito dos homens treinados pelo italiano Claudio Ranieri, que aos 64 anos ainda não tinha ganho nada de relevante e, por todos os que só apostam nos que ganham sempre, era apelidado de “looser”, essa palavra que as telenovelas de todo o género transformaram em conceito global para que os que não ganham sejam considerados uma espécie de casta inferior.

Sim, ninguém votaria em Claudio Ranieri para gerir a EDP, porque ele não soube gerir outros balneários, onde os interesses dos jogadores-estrela, dos seus agentes sem clube do coração e de dirigentes com mais ambição do que respeito pelo emblema nunca o souberam amparar, respeitar e dar-lhe condições de governabilidade/gestão.

Sim, a glória do Leicester é um pouco a glória de todos nós. Mesmo para os que acreditam ou até apoiam a alienação dos alicerces económicos que, hoje em dia, são cruciais para a permanência de Portugal entre os territórios considerados nação. Parece esquisito, não é? Mas não, basta recordar o conceito e essência de nação. Fica o alerta: estamos a perder interesses comuns e a evitar momentos que dão corpo à História. E sem História não há nação.

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